Misteriosa igreja em Cocal polemiza povoamento do Piauí

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A fazenda Frecheira possui paradisíacas e copiosas piscinas naturais de águas límpidas e cristalinas, provenientes de inúmeras nascentes borbulhantes, que provocam notáveis enxurradas formadoras de pequenas cascatas e riachos.

Estes minadouros são cercados naturalmente por exuberante e verdejante vegetação, a maior parte de grande porte e intrincada. Ali estão as frondosas árvores nativas como buriti, açaí, babaçu, pau d’arco, cedro, faveira e outras, ao lado de árvores frutíferas exóticas como bananeira, mamoeiro, mangueira, coqueiro e outras, tudo em um fulgurante verde, resultante do nutritivo húmus e da elevada umidade do lençol freático.

Esse bem drenado solo demonstra até que ponto a água subterrânea do local é generosa. O microclima nesta verdadeira floresta tropical é ameno, mal se observando em algumas partes a luz do sol, de tão densas e elevadas as suas árvores, cujas copas se confundem e se entrelaçam.

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A IMPRESSIONANTE FLORESTA DA FAZENDA FRECHEIRA

Esta não é uma descrição de um sítio na exuberante Mata Atlântica e nem mesmo de algum trecho mais úmido das matas ciliares ao longo do Rio Parnaíba.

Na verdade, descrevemos uma propriedade de uma região constantemente castigada pela seca, de vegetação de transição cerrado-caatinga. Trata-se da fazenda Frecheira, situada cerca de 13 quilômetros ao norte da cidade de Cocal da Estação, no norte do Estado.

Por uma das estradas dessa propriedade de 100 hectares, caminhamos os primeiros 50 metros sob um escaldante solo arenoso, cercado de plantas tortuosas e ressequidas, de pequeno porte e com pouca ou nenhuma folhagem. Uma típica mostra do ressecamento climático que restringe o verdejar da vegetação, resultando numa natureza quase morta.

De repente e sem nenhuma transição, nos deparamos com uma portentosa muralha verde e úmida, que ocupa a maior parte da propriedade, causando agradável espanto e admiração aos visitantes.

Aos domingos a população dos arredores costuma frequentar uma paradisíaca  piscina natural onde, através de uma cristalina lâmina d’água  se percebe o fundo, constituído por areia grossa e seixos.

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A EXUBERANTE NATUREZA DA FAZENDA FRECHEIRA

Lamenta-se, porém a desagradável poluição provocada por banhistas mal-educados, na forma de fogueiras, latas, plásticos, vidros, papéis e talhes criminosos nas árvores.

Como se só o impressionante e luxuriante oásis local não bastasse para nos surpreender, no outro lado da fazenda existe um pequeno enigma histórico, que nos desviou prontamente a atenção daquela magnífica dádiva da natureza.

Noa dirigimos à outra entrada, pela sede da fazenda, onde os moradores nos guiaram gentilmente pelos elevadíssimos coqueirais e seculares mangueiras, sempre entrecortados por límpidos córregos, até uma antiga e abandonada igreja.

O templo misterioso está totalmente entregue às intempéries, ou pelo menos o estava quando o visitamos, em 1998. Porém, a sua majestosa solidez estrutural é mantida pelas espessas paredes de pedra e ciclópicas colunas, tudo em pedras impecavelmente amalgamadas com argamassa.

É a segunda igreja mais antiga do Piauí. A primeira é a de Oeiras. – Nos disse com orgulho uma senhora, moradora da fertilíssima propriedade.

Foi um tanto quanto surpreendente para nós esta afirmação, de uma convicção generalizada nas cercanias entre os moradores. Só nos aguçou ainda mais a curiosidade…

A igreja mais antiga do Piauí oficialmente é a catedral de Nossa Senhora da Vitória, em Oeiras, antiga Capital do Estado. Foi concluída em 1733, sobre as ruínas de uma capela de palha, construída por sua vez em 1697 pelo padre andarilho Miguel de Carvalho (?-?).

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IGREJA N.S. DA VITÓRIA, OEIRAS: OFICIALMENTE, A MAIS ANTIGA DO PIAUÍ.

A igreja mais antiga da região norte do Estado e talvez a segunda mais antiga do Piauí seja a de Piracuruca, sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo. Foi mandado edificar pelos portugueses irmãos Dantas, localizando-se a uns 60 km em linha reta da igreja de Cocal. Foi iniciada em 1743 e concluída em 1760.

Na estranheza de um povoamento tão antigo para a região norte do Estado, nos inteiramos que ninguém sabe em que época foi construído o templo católico de Frecheira. É praticamente anônimo, mesmo para as autoridades eclesiásticas. 

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A MISTERIOSA IGREJA DE FRECHEIRA

Do pátio frontal observamos os relativamente modernos encanamentos para lampião a gás à base de carbureto nas suas paredes e no seu interior. Claro que foram implantados muito após a edificação do templo. Este se compõe de um salão principal (a nave) e duas salas laterais, além da sacada. Destaca-se a presença de imponentes arcadas.

Adentrando atentamente o edifício, percebemos de imediato o lastimável abandono em quem se encontra aquela riqueza histórica e arquitetônica (foram feitos reparos posteriormente). O cheiro nauseante dos incontáveis morcegos que esvoaçam desordenadamente pelas dependências do templo é acompanhado por seus desagradáveis excrementos, que inundam as paredes e o assoalho.

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DETALHE DA NAVE DO TEMPLO EM 1998

Aliados aos morcegos e às formigas, os abomináveis cupins destroem as estruturas de madeira da nave. Assim aconteceu com o teto, com a sacada e sua escada, onde os pomposos nobres de outrora assistiam solenemente os cultos em posição de destaque, em relação ao povão e aos escravos.

Subir na sacada até alguns anos atrás era um exercício de sorte, coragem e habilidade, dado ao estado de decomposição da estrutura de madeira. Os cupins fizeram a farra…

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 ESTRUTURA DO TETO DO TEMPLO

O altar, ricamente adornado, mas também bastante deteriorado, abriga algumas imagens de pequeno porte. Alguns objetos antigos nos foram mostrados pelos moradores, como um candelabro de madeira e um jarrinho de cerâmica, abandonados num canto qualquer da nave.

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DETALHE DO RETÁBULO

Numa parede interna, quatro lápides registram o lamento das famílias dos falecidos. O mais antigo dos epitáfios remonta a 1872.

Um afoito morador subiu cuidadosamente na arruinada escada até a sacada e ali tocou respeitosamente o velho sino. De repente, tudo pareceu criar vida e voltar ao passado. Imaginamos os resolutos fiéis de tempos idos sendo despertados e convocados rigorosamente pelo chamado ao culto dominical. A missa de então era mais do que uma obrigação litúrgica. Era o momento de notícias, reencontros, emoções, confraternização…

Ali, sem dúvida, era um centro de aglutinação dos poderosos senhores, dos sofridos e humildes trabalhadores livres e dos resignados escravos. Todos unidos e integrados – ainda que momentaneamente – pelo ideal comum da fé.

As paredes e o assoalho da nave e dos salões parecem já ter sofrido reformas ao longo do tempo. O azulejo, por exemplo, embora antigo e de provável origem lusa, certamente não é o original. 

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IMAGEM MAIS RECENTE DO TEMPLO. FONTE: MOYSÉS.

Saímos do templo intrigados pela indeterminada data de sua construção. Talvez o fato de ter sido sempre propriedade de particulares tenha sido decisivo para que a igreja não possua registro de sua construção. Também o local é um tanto quanto isolado ainda nos dias de hoje. Mas isso não significa que necessariamente em tempos idos a população da região tenha sido tão rarefeita.

Segundo nos informaram no local, o atual proprietário da fazenda residiria na cidade de Parnaíba.

De volta à entrada principal da propriedade, visitamos a sua sede, onde pudemos contemplar a imagem em madeira da titular do templo: Nossa Senhora do Rosário. A escultura em madeira está bem conservada em que pese a falta de um dos dedos de uma das mãos e algumas rachaduras na pintura facial. O Menino Jesus, que é amparado nos braços da santa, foi retirado para reforma pelo proprietário, na época em que estivemos lá.

A imagem, totalmente esculpida em madeira, pesa cerca de 80 quilos e, segundo nos informaram, é de origem portuguesa.

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A ESCULTURA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO

A origem e a idade da igreja de Frecheira são polêmicas. Há no alto de seu frontispício uma tosca e quase inelegível gravação com os números 1,6,1,6, postados em círculo, o que levou alguns curiosos a supor serem estes números a data de sua construção. Ou seja, a espantosa data de 1616!

Segundo o professor da Universidade Federal do Piauí, Paulo de Tarso Libório, a imagem da santa é barroca, do século XVIII, mas a pintura não é original. A igreja deveria, segundo a sua opinião, ser do mesmo período. Em outras palavras, de 1720… 1730… 1770…

Por sua vez, a diretora do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) Diva Figueiredo diz que, por suas características arquitetônicas, a igreja teria sido construída, no mínimo, no século XVIII, hipótese que ela também alicerça pelo estilo barroco da imagem.

Acrescenta a Sra. Diva que o templo de Frecheira poderia ter sido construído pelos latifundiários na época dos engenhos de açúcar. Os engenhos teriam desaparecido e a igreja sobrevivido.

Segundo Juliana Eulálio, para o professor Paulo Vasconcelos a igreja apresenta características das construções jesuíticas, estrutura maneirista, que antecede ao barroco, representada pela simetria e pelas vigas retas e simples sem adornos e exageros, possui apenas uma nave central e há ausência de torres. 

Acrescenta o professor que considerando a data gravada de 1616, acredita-se que esta seja a arquitetura mais antiga do Piauí. Porém, não existem registros documentais que comprovem a veracidade da data. O historiador Olavo Pereira da Silva, que atualmente trabalha no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em seus estudos não conseguiu encontrar nada que pudesse atestar a validade da data encontrada na fachada. Mesmo sem uma prova documental a igreja representa uma importante construção, “uma preciosidade arquitetônica”, como ressalta o professor Paulo. 

O médico e historiador oeirense Dagoberto Carvalho Júnior contesta de maneira surpreendente todas essas afirmativas de antiguidade do templo. Diz ele em entrevista ao jornal Meio Norte: 

Para mim, ela data do início do século XX, talvez de 1917, por aí; é preciso recorrer às minhas anotações das épocas, mas tenho o embasamento para afirmar…

Parece-nos que o nobilíssimo historiador mafrense cometeu um espantoso equívoco em sua afirmação. Nem o estilo arquitetônico da igreja, nem a total ausência de arquivos ou referências estão de acordo com a juventude atribuída à construção. Além do que, encravados nas volumosas paredes existem túmulos de aristocratas que remontam ao século XIX. A lápide do mais antigo é a do alferes português José de Almeida, nascido em 1830 e falecido em 1872. E esses túmulos são geralmente muito mais recentes do que a obra que lhes abriga

Segundo o parnaibano Renato Neves Marques, da Academia de Letras Parnaibana, a igreja de Frecheira possui características de uma igreja de Olinda, Pernambuco, datada do século XVII.

Esta disputa pela primazia da conquista e povoamento do Piauí entre o norte e o sul do estado, envolvendo parnaibanos e oeirenses é notória e infindável…

E aquela portentosa igreja aglutinaria em torno de si uma população que labutava em torno de que atividade econômica? Pela imponência da mesma, seus proprietários talvez fossem usineiros de cana-de-açúcar. Ou quem sabe o tabaco ou o algodão…Talvez um curto ciclo econômico de nossa história primeva, cuja memória se perdeu em circunstâncias desconhecidas… Uma ilha econômica que floresceu e feneceu sem deixar registros…

Segundo o notável historiador F. Pereira da Costa (1851-1923), somente após 1780 é que a cana-de-açúcar começou a ser cultivada na então capitania do Piauí, bem após o algodão e o fumo (estes a partir de 1700). Não obstante, segundo o insigne historiador padre Cláudio Melo, durante a visita do primeiro governador colonial João Pereira Caldas (1724-1794) à vila Surubim (hoje Campo Maior) em 1761, o mandatário tomou conhecimento da existência de vários engenhos de açúcar e alambiques para cachaça. Até 1780 estava documentada a existência de 21 engenhos e 10 fabricantes de cachaça nas terras de Surubim, segundo o mesmo pesquisador.

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IMAGEM ILUSTRATIVA DE UM ANTIGO ENGENHO DE CANA. FONTE: http://igorwanderleyy.blogspot.com.br

Nada impede, pois que nas terras úmidas e quentes da fazenda Frecheira houvesse uma próspera lavoura de cana-de-açúcar e um engenho do qual não restam mais vestígios. Pertenceriam a algum poderoso latifundiário local cujo nome se perdeu para sempre para a nossa história. Talvez algum imigrado afoito da Zona da Mata.

Segundo a Sra. Diva Figueiredo, a igreja poderia ter sido construída por jesuítas. Disse ela em entrevista ao jornal Meio Norte: 

Mas não existe nenhum estudo que comprove que ela tenha sido construída por eles. No entanto, as características são jesuíticas. Porém, a construção pode ter sido apenas imitada.

Ora, se a igreja de Frecheira fosse de origem jesuítica, certamente remontaria a muitos anos antes de 1758, ano das perseguições pombalinas que extinguiu sua ordem no Brasil.

Concluindo, Diva Figueiredo acrescenta que o templo se assemelha muito com igrejas do litoral do Nordeste, associadas aos engenhos de açúcar.

Em suposta tão antiga como querem alguns, se a igreja não foi construída particularmente por algum jesuíta, bem poderia ter sido erigida sob a sua inspiração por algum latifundiário, como diz a Sra. Diva.

Sobre o assunto nos explica o padre Melo:

Embora a documentação seja muito pobre e mais pobre ainda a pesquisa, é certo que os jesuítas da Ibiapaba visitaram também as primeiras fazendas que se fundaram nas proximidades da Serra (Ibiapaba), do lado ocidental, particularmente as que se criaram na ribeira de Piracuruca. Tem-se notícia que por lá se negociava o sal.

E mais adiante:

Os jesuítas do Piauí, desde o tempo do Padre Domingos Gomes, sempre tiveram sacerdotes a serviço das comunidades vizinhas que, como missionários da fé, percorriam as paróquias no maravilhoso trabalho da difusão da fé. Não se fixaram em nenhuma paróquia, não aceitavam nenhum encargo além de pregadores da fé. Mas, nas suas andanças, estimularam os fazendeiros a construírem pequenas casas de oração, ou a reformarem suas igrejas.

Teria o templo misterioso de Frecheira nascido neste estímulo religioso aventado pelo padre Melo? Um próspero usineiro quis demonstrar seu poder e posses através de um instrumento material de fé? Ou a igreja teria sido construída pelo martirizado jesuíta Padre Gabriel Malagrida (1689-1761), estrangulado e queimado pela abominável Inquisição em Portugal?

O padre Malagrida percorreu os rios Marataoã (em Barras) e Surubim (em Campo Maior), além das terras de Piracuruca, isso em 1735. Consta que em 1751 teria obtido da coroa Portuguesa a autorização para fundar um seminário onde melhor lhe aprouvesse.

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PADRE GABRIEL MALAGRIDA. REPRODUÇÃO.

No seu livro Os Jesuítas no Piauí o padre Cláudio Melo diz que esse seminário, do qual hoje supostamente nada resta, teria sido edificado onde hoje é a atual cidade de Buriti dos Lopes, no norte do Estado, próximo à foz do rio Parnaíba. Não muito distante do templo de Frecheira. Seria interessante se pudéssemos saber se o padre Malagrida percorreu ou se demorou nas plagas da igreja misteriosa. Teria ele alguma participação em sua edificação? Não seria na fazenda Frecheira o seminário, o qual, construído de material mais simples, desapareceu?

De qualquer maneira, podemos nos perguntar se em suas extraordinárias catequeses pelos sertões setentrionais do Piauí o jesuíta não tivesse pelo menos construído uma capela de palha que inspirou aos colonos a construção do monumento? 

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TERIA COMEÇADO ASSIM A IGREJA DE FRECHEIRA? FONTE: http://taylanalis.blogspot.com.br

A solidez e a imponência da estrutura do formoso templo de Frecheira nos induz a crer uma população razoável por ali em tempos idos. Melhor dizendo, uma população bem mais numerosa do que se esperaria. E uma população amparada por alguma atividade econômica rentável. Não é uma simples e rústica capela, muito comum em antigas fazendas. Trata-se de uma estrutura complexa, robusta, que requereu muita mão–de-obra e que poderia abrigar na sua nave e na sacada talvez uma centena de fiéis. E havia no século XVII colonização no norte de nosso território, antes da chegada dos “Domingos” (1663)? 

Segundo o escritor Moisés Castello Branco Filho (1905-1988), vaqueiros anônimos, da Bahia e de Pernambuco, através de caminhos na serra da Ibiapaba, povoaram fazendas de gado o vale do Longá. Seriam membros da poderosa Casa da Torre, empreendimento de curraleiros baianos chefiado pelos D’ávilas.

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RUÍNAS DA CASA DA TORRE, NO LITORAL BAIANO. FOTO: JURAY DE CASTRO.

O Longá, último grande afluente do Rio Parnaíba pela margem direita, nasce no município de Alto Longá e deságua no Parnaíba no município de Buriti dos Lopes. Seu vale fica apenas a uns 40 km em linha reta da igreja de Frecheira. Aliás, o riacho Frecheira é um afluente do Pirangi, que por sua vez é afluente do Longá.

O trânsito por velhos caminhos terrestres entre o Ceará e o Maranhão, via serra da Ibiapaba e vale do Longá parece ter sido bem mais antigo do que se supõe. E neste trânsito pode estar a origem da igreja. Alguém pode ter visto a fértil terra e gostado. Afinal, o lugar era e é paradisíaco…

Os holandeses, segundo alguns indícios, parecem ter realizado busca de metais preciosos em Frecheira, por volta de 1641, segundo o padre Melo. Bem antes deles, o português Pero Coelho de Sousa (fins sec. XVI-meados sec. XVII) atravessou o norte do Piauí em 1603, da Ibiapaba ao Rio Parnaíba. Perseguia indígenas e seus aliados franceses. Em 1613, Martins Soares Moreno (1586-1648) visitou as ilhas e as barras de nosso litoral. Em 1616 foi a Vez de Baltazar Álvares Pestana (? – ?), rumo a Pernambuco.

Em 1656 André Vidal de Negreiros (1606-1680), herói da expulsão dos holandeses e ex-governador do Maranhão, também atravessou o norte de nosso território, vindo do Maranhão rumo a Pernambuco, pela Ibiapaba.

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ANDRÉ VIDAL DE NEGREIROS FOI UM DOS QUE PERCORREU O NORTE DE NOSSO TERRITÓRIO, ISTO EM 656. PINTURA ANÔNIMA. FONTE: http://pt.wikipedia.org/wiki

Com todas as dificuldades, era bem mais aconselhável do que a navegação costeira do Ceará ao Maranhão, onde os bancos de areia e de corais provocavam muitos naufrágios, o que, aliás, ocorre até nos dias atuais. Formou-se por ali um verdadeiro cemitério de incautos navios, sendo um dos mais ilustres e trágico o da expedição de Aires da Cunha (?-1536).

Diz Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), comentando o naufrágio de Luís de Melo em 1554 nos baixios maranhenses:

Todos esses fatos vinham corroborar as dificuldades da navegação naquele trecho do litoral, entre recifes traiçoeiros, lutando com o mar grosso e a força das correntes, diante de uma costa a que faltam, desde o Ceará, pontos de referência para um roteiro que, distante da terra, pudesse ainda acompanhar os acidentes do continente. Região árida, sem a segurança de surgidouros acessíveis, com a própria entrada dos rios dificultadas pelas areias, que os alíseos deslocam das margens estéreis. Até mesmo as sondagens frequentes não tranquilizam o navegante, quando sabe que precisa contar com os parcéis escarpados e as lajes solitárias.

Na altura do Maranhão, esses perigosos como que se acentuam. Prolongam-se a distâncias maiores, levando também para longe as correntes marítimas, que ali correm mais impetuosas. Com semelhantes riscos, a cabotagem torna-se esforço e aventura.

Martins Soares Moreno, por sua vez, calculava a viagem de cabotagem entre o Maranhão e o Ceará de 5 a 6 meses. Melhor e mais rápido mesmo era ir caminhando…

Parece que até mesmo o velho Garcia d’Ávila, poderoso senhor da Casa da Torre optou pelo caminho terrestre em sua aventura pelo Piauí. Diz o historiador padre Melo:

Pedro Calmon, em data que presumo ser em 1672 ou 1673, nos fala daquela viagem do velho Garcia d’Ávila, antes do oficial descobrimento do Piauí. Pelo que se sabe, esta marcha se fez quando o velho mestre de campo, senhor da Casa da Torre, foi bater os bárbaros em guerra justa (sic), atravessando Pernambuco, o Ceará Mirim e chegando aos confins do Maranhão. Ora, se tal foi o roteiro, não passaram pelos vales do Piauí e Gurgueia.

Certamente Cláudio Melo não se refere ao velho Garcia de Sousa d‘Avila ( 1528-1609), provável filho bastardo de Tomé de Sousa (1503-1579), o todo poderoso fundador da Casa da Torre mas um dos seus descendentes, que utilizavam o mesmo nome do ancestral famoso.

Em existindo um caminho antigo ligando o Maranhão ao Ceará pelo norte do Piauí em priscas eras, teríamos que supor que o Garcia d’Ávila teria passado muito próximo de onde fica a paradisíaca fazenda Frecheira. Teriam os curraleiros se encantado com a fartura natural do local e alguns deles se instalado por lá?

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CURRALEIROS TERIAM CHEGADO A FRECHEIRA VINDOS DA IBIAPABA? FIGURA ILUSTRATIVA. FONTE: http://prol3.blogspot.com.br

Esse caminho ao norte teria a verdejante propriedade como base de apoio? Seguindo o rio Pirangi, que nasce no Ceará e é afluente do Longá, os exploradores alcançariam o Parnaíba e, daí, o Maranhão.

Frecheira teria florescido como entreposto nesta rota? Alguns antigos membros da Casa da Torre ou outros sertanistas subsequentes teriam se instalado por lá, seduzidos pela formosura de sua vegetação e pela fertilidade de seu solo? Quem sabe, implantaram por ali canaviais e uma usina de açúcar…

Como escoariam a produção? Via rio Parnaíba? Ali só chegariam a lombo de burro. Ou a produção seria pequena, suficiente apenas para um florescente mercado interno? Talvez também criassem gado bovino ou plantassem algodão ou fumo… Tudo caminha paralelo ao mundo das hipóteses…

Por que o assunto da igreja de Frecheira parece tabu entre alguns historiadores do Piauí? E por que é palco de acirradíssimas discussões entre outros?

Está em jogo a primazia na conquista e devassamento do território piauiense entre o paulista Domingos Jorge Velho (1641-1705) e o português Domingos Afonso Mafrense (?-1711), de um lado, e ignotos colonizadores do norte do território. O primeiro teria chegado talvez via Ceará em 1662 ou 1663, estabelecendo seus latifúndios às margens do Rio Poti e do Parnaíba. O segundo, teria chegado ao nosso território de 1674, se estabelecendo a princípio no local Poções de Baixo, nas margens do rio Canindé, próximo a atual cidade de Oeiras.

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DOMINGOS JORGE VELHO, EM PINTURA DE BENEDITO CALIXTO (1903). FONTE: http://pt.wikipedia.org/wiki/Domingos_Jorge_Velho

Há uma disputa entre historiadores oeirenses e parnaibanos pelo local por onde teria começado a obra civilizadora no Piauí. Norte ou sul? Litoral ou interior?

Os oeirenses defendem a tese tradicional: a colonização deu-se através de membros da Casa da Torre, tendo a frente o mafrense, seu irmão Julião Afonso Serra (? – ?) e mais Francisco Dias d’Ávila (? _ ?), herdeiro da Casa da Torre, seu irmão Bernardo Pereira Gago (? – 1683) e outros.

Os parnaibanos, por sua vez, defendem que a colonização do Piauí teve início pelo litoral, muito antes dos “Domingos”.

Vejamos o comentário do Padre Melo:

Há uma tese dita, repetida e confirmada que o Piauí foi povoado de sul para norte; que tal povoamento começou no terceiro quartel do século XVII, como resultado das conquistas da Casa da Torre; que teve como descobridor(es) Domingos Jorge Velho e/ou Domingos Afonso Mafrense; e que os primeiros currais surgiram no vale do Gurguéia e daí passaram aos vales do Piauí e Canindé, atravessaram o Poti e pelo Longá chegaram ao extremo norte.

O erudito pesquisador acreditava que nosso povoamento começou realmente pelo litoral, ainda no século do descobrimento e que a implantação dos primeiros currais teve sua marcha pela serra da Ibiapaba e não pelos vales do Piauí e do Gurguéia. Nisso se alicerçam com vigor os parnaibanos

A ter razão o padre, nada mais lógico no reforço da antiguidade da igreja do município de Cocal. Ou pelo menos a suposição de que as terras úmidas da fazenda Frecheira fossem conhecidas pelos que desciam a cuesta da Ibiapaba. Não dá para imaginar que a fertilidade de seu solo, a exuberância de seus bosques e a abundância de mananciais não tenha atraído a atenção dos exploradores e curraleiros de outrora. Os viandantes necessitavam de estação de repouso para recompor suas energias. Onde melhor conseguiriam frutos nativos, caça e fartura de água do que na Frecheira?

Ao se referir ao náufrago Nicolau de Resende e seus companheiros em 1571 no Delta do Parnaíba e seus no mínimo 17 anos entre os tremembés do delta, o padre nos diz:

Foram estes homens os que, por primeiro, deram ao sangue nativo o componente luso, e os únicos a merecerem, até o momento, o título de descobridor do Piauí, pois aqui vieram, aqui viveram, constituíram família, trabalharam, quer desbravando terras quer comerciando com os europeus. E não consta que voltaram à pátria. Para mim é uma injustiça imperdoável ao historiador moderno, negar a Nicolau de Resende e seus companheiros o título disputado por Domingos Jorge Velho e Domingos Afonso Mafrense.

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FOI NUMA CARAVELA DESTAS QUE NICOLAU DE RESENDE NAUFRAGOU E CHEGOU AS TERRAS PIAUIENSES. FONTE: http://www.meionorte.com

E mais adiante acrescenta:

Quer queiramos, quer não, enquanto outra ocorrência anterior não for descrita, foi em Luís Correia e Parnaíba que começou a civilização lusa no Piauí.

Caso a afirmação categórica do pesquisador seja verdadeira, então os defensores da alta antiguidade da igreja de Frecheira poderão colher neste reforço mais um indício a favor de sua origem pré-colonial. Afinal, se o povoamento começou com Resende e colegas, nada mais lógico que ao longo das décadas seguintes, a região norte, devassada por curraleiros ou agricultores, tenha visto nascer o grandioso e polêmico templo.

E parece ter razão o padre, pois, embora a história não tenha documentado bem esta colonização, alguns pormenores quase imperceptíveis nos mostram que a população da terra dos alongases, ou seja, da faixa de terra compreendida entre o oceano (norte), a Ibiapaba (leste) e o rio Bitorocara (o Piracuruca para Odilon Nunes e o Longá para o padre Melo), era bem mais numerosa do que seria de se esperar ainda em 1697.

Com efeito, nesse ano e seguintes, o extraordinário padre Miguel de Carvalho, no seu monumental levantamento dos currais piauienses, nos diz que pela terra dos alongases havia somente 13 pessoas. Ora, isso bem poderia servir de argumento para os defensores do povoamento pelo sul, não fora a vigoroso rebate do padre Melo:

No entanto, 3 meses antes da assinatura deste documento (1697) ali se celebrou uma missa durante a quase fizeram 317 confissões e se deram 275 comunhões. De onde teria vindo tanta gente?

Noutro texto o escritor se refere a centenas de confissões em três comunidades, durante 18 dias. 

Evidente que, em decorrência dos transportes precários e das distâncias, as cerimônias religiosas foram efetuadas em vários dias. Entretanto, levando em conta que só os brancos então eram cristãos, e talvez alguns escravos, conclui-se que a região norte do território, a dita região dos alongases possuía uma população colonial total acima de 1.000 indivíduos. O que seria assombroso para a época (1697) e para o que conhecemos sobre a nossa história.

A falha do padre Miguel de Carvalho talvez esteja no fato de que não levou sua pesquisa muito ao norte.

De qualquer maneira, é interessante notar que o censo do padre Carvalho apontou um total de apenas 155 brancos para todo o Piauí. Juntando-se aos negros, índios e mestiços que viviam nas fazendas e nem todos cristianizados, tivemos apenas 605 recenseados.

Ora, isto estava bem aquém dos documentos colhidos pelo padre Cláudio Melo, segundo os quais em poucos dias se fez a confissão de 317 cristãos!

Mas o caso é muito mais complexo do que se supõe. Cada lado tem seus ferrenhos defensores e seus respectivos argumentos. Não há um consenso entre as autoridades da historiografia piauiense. Mas nós concordamos com o padre Melo quando o mesmo diz que é impossível ignorar a presença de Nicolau de Resende. 

Na verdade, para o que nos propomos aqui, a polêmica é a igreja de Cocal. Se for comprovada a sua alta antiguidade, digamos pelo menos o início do século XVIII, não restará duvida de que o povoamento do Piauí realmente começou pelo norte.

De qualquer maneira, ainda que sua construção fosse mais recente, não invalidaria a tese do padre Melo, em decorrência dos documentos que comprovam as centenas de batismos, numa região que, teoricamente, deveria ser escassamente povoada em 1697, com seus 13 habitantes.

Quanto ao nosso templo de Cocal, só o que podemos fazer é aguardar pesquisas e investigações mais profundas que elucidem sua origem e idade. No mais são só hipóteses…

A título de curiosidade, um político piauiense de Parnaíba afirmou há anos que escreveria um livro sobre a História do Piauí. Um dos itens desse trabalho seria mostrar que a Igreja de Frecheira teria sido vítima de uma maldição, teve seu terreno salgado e permaneceu com suas portas fechadas por cem anos. De onde o ilustre piauiense extraiu estas informações, ignoramos, como ignoramos se o erudito senhor publicou sua obra.

Depois de nossa visita foram feitos reparos e manutenção no templo. Ocasionalmente a comunidade das cercanias organizam festejos com casamentos, batizados, crismas, etc. A edificação é tombada pelo patrimônio estadual através da FUNDAC.

 Fontes:

ABREU, João Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988.

CARVALHO, Miguel de. Descrição do Sertão do Piauí, 1697. Comentários e notas do Pe. Cláudio Melo. Teresina: Instituto Histórico e Geográfico Piauiense, 1993.  

Castelo Branco Filho, Moysés. O povoamento do Piauí. Teresina, 1981.

Costa, Francisco Augusto Pereira da. Cronologia histórica do estado do Piauí. Ed. Original de 1907. Segunda edição Editora Artenova, RJ, 1974.

Melo, Cláudio. Os primórdios de nossa história. Teresina, 1983.

Melo, Cláudio. Os jesuítas no Piauí. Teresina, 1991.

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