BURY-AÇU, o espírito do brejo: O protetor da natureza e dos animais em Buriti dos Lopes – Piauí

Obra de ficção literária

Osny era muito pequeno quando seus pais chegaram para morar nos arredores da cidade de Buriti dos Lopes, vindos de São Bernardo, cidadezinha do Maranhão. Eles e mais outras famílias da região do Baixo Parnaíba chegavam para plantar arroz na Lagoa Grande, onde todos os anos no período sem chuvas a lagoa secava em quase toda a sua totalidade fazendo surgir milhares de hectares de terras com alta capacidade de produção. Isto atraía pessoas de diversas regiões, não somente das cidades vizinhas.

Final da década de 60 e o Brasil ainda vivia sob forte influência da ditadura militar que se instalara desde 31 de março de 1964. A cidade de Buriti dos Lopes vivia uma verdadeira euforia financeira. As calçadas das casas, as praças, muitas vezes até as laterais de ruas e avenidas eram utilizadas para secagem de arroz, dada a grande produção daquela época nas margens da lagoa. Os agricultores montavam acampamentos em barracas improvisadas com palhas de carnaúba e de buriti.

Sanfoneiros tocavam seus acordes para animar as noites após árduos dias de trabalho, prostitutas da cidade e outras vindas das cidades vizinhas mantinham ali seus pontos de atendimentos. Restaurantes rústicos onde velhas senhoras preparavam pratos de arroz, feijão com pequi e toicinho, peixes, carne de sol e frito de capote. Os botequins vendiam cachaça da Serra da Ibiapaba e tiquira do povoado maranhense João Perez. Eram milhares de pessoas entre aqueles que trabalhavam diretamente na plantação de arroz e os outros nas atividades de apoio.

João Marcílio era homem jovem e trabalhava na plantação de arroz e Mariquinha também muito jovem e bonita, tinha uma pequena barraca na beira da lagoa para vender café com tapioca e cuscuz de milho e arroz. Osny era o único filho do casal e tinha pouco mais de dez anos. Era menino ativo e inteligente com sua pele muito escura e cabelos negros e lisos. Havia puxado para seu pai, caboclo nascido e criado nas margens do rio Parnaíba. Até meados da década de 1970, tudo ia bem com a produção de arroz. Somente alguns repiquetes do rio Parnaíba adentravam de vez em quando na lagoa, comprometendo a produção. Isto somente a partir do mês de novembro quando o rio recebia água das chuvas em suas cabeceiras e ficava mais alto que o nível do Longá, que alimenta a grande lagoa.

O governador do Piauí naquela época mandou construir três grandes barragens com o objetivo de controlar suas águas protegendo a plantação. Entretanto, devido a um erro no projeto, a lagoa nunca mais veio a secar totalmente, diminuindo a área produtiva. Começa aí uma fase ruim para a economia buritiense. Sem produção de arroz muitas famílias voltaram às suas cidades de origem, enquanto outras ficaram para tentar a sorte em outras atividades, mesmo em Buriti. Os pais de Osny transferiram sua barraca de café para a praça de nossa Senhora dos Remédios, onde Mariquinha trabalhava a noite inteira, enquanto João apanhava buritis no brejo para fabricar doces em sua casa construída de barro, coberta de palha e que ficava na entrada da cidade próxima ao brejo do riacho Buriti.

Osny cresceu brincando com seus amigos naquele brejo. Todos se reuniam para tomar banho no “buraco do seu Lucas”, comiam as mangas no brejo da dona Rosa, atiravam pedras nos telhados das casas dos Alípios e corriam para se esconder nos fundos da Casa Grande dos Pires Sampaio, onde morou o Almirante. Osny com seus pequenos amigos gostava muito de cortar as palmeiras para comer os palmitos. Armavam forjos para pegar preás e cutias. Com suas baladeiras atiravam batoques e matavam pequenos pássaros que ali existiam, se divertiam atirando pedras e colocando fogo nas casas das abelhas e dos maribondos. Muitas vezes provocando pequenos incêndios durante o verão. Eles eram verdadeiros destruidores do brejo e nem mesmo velhas corujas, rasgamortalhas, gaviões, anuns e caburés escapavam de suas certeiras pontarias. Na manhã seguinte já estavam na beira da BR-343 vendendo aos turistas suas caças estranhas como se fossem nambus, jacus e juritis. A estrada era a fonte de renda. Ali vendiam também umbus, ciriguelas e pedaços de cana de açúcar, tudo retirado da abundante flora e fauna do brejo.

Osny já havia completado 15 anos, mas ainda tinha um corpo de menino. Baixo e franzino, nem parecia ser o líder dos meninos que costumavam fazer traquinagens naquelas redondezas. Certa vez, logo após o meio-dia, Osny e seus amigos partiram para o brejo para mais uma de suas caçadas. Desta vez iriam de brejo adentro até a pedra do Peral. Levaram três cachorros bons de caçada, valentes e que já haviam brigado com onças, guaxinins e mambiras. Pleno mês de outubro, tempo quente e seco, o riacho deslizava lento e frágil entre os buritis e as mangueiras. A vegetação rasteira só se mantinha verde no banhadão do riacho.

Os meninos que já haviam caminhado por todo o brejo e estavam cansados se sentaram à sombra de uma grande mangueira nas margens do riacho e caíram em sono profundo. Até os cachorros dormiram naquela tarde. Osny acordou assustado ao ouvir os latidos desesperados dos cachorros. Era como se tivessem encontrado algum animal grande. Pensou que poderia ser uma onça, uma cobra de veado ou mesmo sucuruiu. Gritou pelos amigos, mas eles não despertavam. De repente apareceu ali mesmo um pequeno homem de cor muito escura, com enormes cabelos e pelos compridos nos braços e pernas. Tinha dentes grandes e olhos brilhantes, negros como a noite sem lua no inverno. Batia nos cachorros com um cipó de jucá, até que eles se afastaram em assustada corrida. Assombrado, mas curioso, Osny procurava controlar o medo daquela estranha criatura que se aproximava. Era possível sentir seu cheiro e calor do cachimbo enorme, preso nos lábios. Osny tremia e suas pernas já não mais respondiam à sua vontade. Quase não se mantinha mais em pé. Quando a criatura coloca a mão em seu ombro e diz: – Osny, quero falar com você. Sua voz era calma, porém firme. Osny ainda assustado apenas respondeu que sim, levemente balançando a cabeça, enquanto os outros meninos do grupo ainda permaneciam como se estivessem sob efeito hipnótico. – Eu sou uma divindade. Vivo nas matas, tenho poder sobre todos os animais da terra e do ar, controlo o fogo e a mente dos homens. Sei do passado e do presente. Sou o responsável por esse brejo também. Você, Osny e seus amigos matam pássaros e pequenos animais, cortam palmeiras e botam fogo nessas matas.

Recuperado do susto, Osny se senta e a criatura senta-se ao seu lado e lhe mostra todos os segredos do brejo. Conta sobre a origem do mundo e dos animais. Fala dos homens da cidade que destroem a natureza, poluem os rios, os lagos e o ar. Disse que lembra quando a cidade de Buriti dos Lopes floresceu do brejo e do riacho, mas se não pararem a destruição, o brejo vai morrer e o riacho vai secar se tornando apenas um enorme esgoto, cheio de lixo e entulho. Que o vento frio que sempre sopra sobre a cidade após as tardes quentes não mais vai existir. A divindade disse para que o menino se levantasse. Osny obedeceu e ficou atento às suas palavras. – Osny, você não será mais um caçador. Sua missão agora será a de defender este brejo, suas árvores e seus animais. Você e seu grupo vão viver da venda de frutas, que a partir de agora vão colher para vender na beira da estrada, no mercado e nas casas. Em troca, vocês vão cumprir a difícil missão de convencer as outras pessoas da cidade sobre a importância da necessidade de preservar a natureza! A noite havia caído e o menino nem percebeu o tempo passar. O espírito do brejo disse para Osny que ele fosse embora e então desaparece como o apagar de uma luz, sem fazer qualquer ruído. Os outros meninos despertaram e os cachorros retornaram. Osny lhes conta tudo o que aconteceu.

Todos pareciam não acreditar naquela estranha conversa. Menos mindinho, o mais novo da turma, que tinha apenas 11 anos, mas era o mais sabido de todos, gostava muito de estudar e de ler histórias e lendas. O grupo se pôs a caminhar e haviam desistido da caçada nas matas próximas à grande pedra, que ficava há alguns quilômetros dali. Não muito distante do lugar onde haviam dormido os meninos param ao ouvir um estampido como se fosse um trovão. Diante deles, ali, soltando gargalhadas, o pequeno negro voava em ziguezague, passando sobre os meninos, que assustados se dispersam em corrida desesperada se batendo nos arbustos entre as palmeiras. Correm sem parar até conseguirem chegar na cidade. Cansados caíram sobre as calçadas da praça Antônio Romão, com os pés cheios de espinhos e os braços e pernas arranhados. Perceberam que somente Osny havia ficado no brejo. Recuperados do susto, procuram seus pais a quem contam o que havia acontecido no brejo e que não sabiam onde estava Osny.

Um grupo de vizinhos e amigos de João Marcílio se organizou e adentrou no sinistro brejo naquela noite sem lua. Seguiram entrando pelo casarão da Zezita. Eram mais ou menos uns dez homens. As mulheres ficaram no largo em frente à prefeitura, onde estão as pedras dos portugueses. Após horas de caminhada, sem sucesso, naquela noite que nem os pássaros noturnos estavam voando, puro silêncio, o vento calmo não movia sequer uma palha. Era de meter medo. Por volta da meia-noite, o silêncio foi quebrado com um grito da rasgamortalha, uma enorme coruja branca do brejo que passa voando baixo sobre as cabeças do grupo de resgate. Passa várias vezes e acena como se quisesse que fosse seguida. Velho Jonas gritou bem alto “Valha-me Deus, o bicho tá chamando, temos que ir”. Neste momento, Jonas olha para trás e vê que mais da metade dos homens fugiu, em assustada correria. Pedro do Sindicato, João Marcílio, Jonas, Cidreira e seu primo Dico Cabrão continuaram a nervosa caminhada. Mas um ensurdecedor grito da coruja e logo após uma luz florescente no meio das palmeiras e do capim seco. Surge a figura de um menino, como algo que transcende a matéria. Estava ali na frente do grupo assustado, enquanto o seu corpo de luz diminui a intensidade. Sua boca se abre lentamente em um sorriso e diz: – Meu pai, estou bem. Estava com Bury-Açu, o espírito do brejo e de agora em diante eu e meus amigos somos defensores da natureza. Este brejo é o meu lugar!

Ainda hoje os caçadores e meninos que entram de brejo a dentro com intenção de realizar ações que agridem à natureza, como caçar pequenos animais, queimar casas de abelhas, cortar palmeiras ou mesmo pegar pássaros, sentem a presença de Bury-açu. Seguindo os seus passos e se tiverem a coragem de olhar para trás poderão ver o defensor do brejo, fumando seu cachimbo e com um grande cipó de jucá na mão, para açoitar os caçadores e seus cachorros. Dizem os mais velhos que os loucos que perambulam pela cidade, foram caçadores pegos e amaldiçoados pelo grande espírito defensor do brejo.

José Luiz de Carvalho – Contista, poeta e cronista