Nem sempre uma manumissão (alforria legal de um escravo) era o fim de um triste e penoso arrastar de sofrimentos e privações no Brasil Provincial, mesmo poucos anos antes da abolição de 1888. Claro que alguns começavam euforicamente uma nova vida, livre, notadamente aqueles que tinham profissões valorizadas, como barbeiro, sapateiro, marceneiro, etc. Entretanto, não era incomum o cúmulo de ex-escravos, libertos às vezes por seus próprios donos, voltarem a ser escravizados, mesmo com documentação de alforria.
IMAGEM ILUSTRATIVA DE ESCRAVOS CARPINTEIROS NO BRASIL ANTIGO. FONTE: http://letraespirita.blogspot.com.br/2016/02/voce-sabia-espiritas-ajudaram-na.html
No Piauí, embora a estrutura escravocrata não fosse complexa como em outras províncias, também houve abusos de todas as espécies contra os cativos, inclusive na disparatada escravização de ex-escravos ou reescravização.
Segundo o jornal Conservador de Teresina, Piauí, A ÉPOCA, de 15 de junho de 1878 um senhor de escravos morador da antiga capital Oeiras, de nome Luiz Saraiva de Carvalho havia concedido espontaneamente a manumissão ao seu escravo de nome Constantino no ano de 1877. Não se sabe exatamente a razão da “generosidade” do Sr. Saraiva. Se houve algum pagamento de serviços ou dinheiro a serem quitados posteriormente, não ficou registrado. Mas o fato é que o ato foi reconhecido e julgado pelo Dr. Juiz Municipal, que homologou a papelada, registrada em cartório da antiga capital do Piauí.
Parece que no ano seguinte bateu um forte arrependimento no Sr. Saraiva, pois em junho de 1878 o senhor de escravos reagiu de forma escandalosamente cruel e arbitrária, retomando seu “direito” ao ex-escravo. Segundo expressão do jornal, “nas barbas das autoridades” Saraiva aprisionou o infeliz, amarrou-o, surrou-o e levou-o para a cidade de Amarante, às margens do Rio Parnaíba, de onde o levaria para a venda na cidade maranhense de Balsas.
IMAGEM MERAMENTE ILUSTRATIVA. MAS ASSIM PODEMOS IMAGINAR O POBRE CONSTANTINO SENDO AÇOITADO PELO SR. SARAIVA. FONTE: HTTP://WWW.LUIZCARLOSBILL.COM.BR/BLOG/WP-CONTENT/UPLOADS/2014/08/ESCRAVO-APANHANDO.JPG
O fato escabroso foi denunciado não só pela imprensa, mas também por clubes e grêmios que lutavam pela abolição radical da já agonizante escravocracia. Mesmo com a homologação judicial e o registro em cartório, o tal Saraiva infringiu debochadamente os direitos adquiridos pelo seu ex-escravo.
Movido pelo clamor público da época, o Chefe de Polícia de Teresina ordenou ao subdelegado da cidade de Amarante que prendesse o Sr. Saraiva e libertasse o escravo, por ser aquele ato uma afronta a Lei, indiciando-o por reduzir pessoa livre à escravidão.
O subdelegado de Amarante cometeu outra delinquência policial no caso, quiçá conluiado com o Sr. Saraiva. A autoridade amarantina alegou não poder cumprir a ordem seu superior de Teresina porque o mandato emitido lhe pareceu ilegal! Comenta-se que realmente havia falha no mandato expedido pelo Chefe de Polícia da Capital. De nada então prevaleceu a manumissão, o registro em cartório e a homologação do juiz. O certo é que o pobre ex-escravo, agora escravo novamente Constantino foi levado para Balsas e por lá comercializado.
Outro caso que chamou a atenção foi no norte da Província, na Vila de Piripiri registrado pelo mesmo jornal A ÉPOCA, na sua edição 12 de maio de 1883. O rico fazendeiro Cornélio José de Mello lançou aos grilhões um ex-escravo seu , que estava em plena liberdade. Amim, era o nome do cativo.
O certo é que o Sr. Cornélio conseguiu um mandato judicial para a apreensão, ao que parece abastecido de abundantes dados falsificados no Cartório pelo ex-coletor de impostos Antônio da Silveira Sampaio. Este teria falsificado o livro das matriculas de escravos da vila de Piripiri na parte relativa a averbação da suposta escravidão do aprisionado.
Defendeu o sr. Cornélio e o coletor o poderoso político piripiriense Cel. Thomaz Rebello (1850-1930), deputado provincial, presidente do conselho de Intendência de Piripiri, vice-governador, governador interino, deputado estadual, etc. Rebello contestou as acusações contra seu amigo Cornélio não obstante o ex-escravo ter sido levado para trabalhos forçados em fazenda do capitão Luiz Gonçalves, seu amigo e correligionário. O que parece irregular é que segundo se dizia na época é que Cornélio libertara o cativo sob cláusulas de trabalhos durante a vida de liberto, algo totalmente contrário a Lei da época.
Como terminou o caso, se o liberto foi efetivado novamente escravo em definitivo ou liberto, não sabemos. Mas vislumbra-se a irregularidade dos envolvidos quando se sabe que Antônio da Silveira Sampaio era ex-coletor porque havia sido demitido por tentar subtrair ao Tesouro Estadual a quantia de 750$000!
O certo é que embora as arbitrariedades fossem combatidas por estudantes, jornalistas, advogados e pela própria Lei, abusos casos como os dos casos relatados, espancamentos, torturas, privações e humilhações se estenderam até a Abolição de 1888. Depois desta data tomou uma nova feição, com um grupo numeroso de ex-escravos, agora excluídos da sociedade.
Fontes:
Jornal A ÉPOCA, Teresina-Piauí. Edições de: 15 de junho de 1878; 29 de junho de 1878; 12 de maio de 1883 e 16 de julho de 1884.