O dia em que tomei café com o Rei do Baião, na pensão da Dona Areolina na Piracuruca

Conto, cujo enredo mescla realidade e ficção. É baseado na narrativa do Sr. Raimundo Sobrinho com a colaboração de outras pessoas, devido isso, pode haver inconsistência de datas, períodos e atores. O objetivo maior foi destacar o epísódio histórico (da passagem de Luiz Gonzaga), que de fato ocorreu e ressaltar alguns aspectos e personagens da cidade.

Era mais um final de semana que eu vinha para a cidade, repetir mais uma vez a minha vivência cotidiana na velha Piracuruca dos anos de mil, novecentos e cinquenta e meios. Como sempre, passava a semana cuidando das lidas que a mim eram incumbidas pela Dona Carlota. No entanto, na folga dos sábados e domingos eu vinha para a cidade ver a minha doce Carmo e comprar alguma coisa.

O meu ponto de apoio na cidade era a pensão da Dona Areolina, aquele casarão onde, dantes deu vim morar na Piracuruca, lá pelos trinta e poucos, funcionava o Posto de Higiene da cidade. Aquela área do centro que já era bem movimentada, ficou mais ainda com a construção do prédio do Banco de Brasil, num descampado que tinha na frente da pensão. Hoje o casarão não existe mais, só a desolação de ver um velho caminhão parado dentro do terreno e esperando alguém convidá-lo ou levá-lo à força para o ferro velho.

A pensão da Dona Areolina era o ponto de parada dos horários da Expresso de Luxo e do Ipú, os velhos Caminhões Jardineira, primórdios dos ônibus atuais, rasgavam a Ibiapaba e levavam gente do Ceará para o Piauí, de lá pra cá e daqui pra lá, num frenético vai e vem de gente curiosa e interessante. Dona Areolina e seu esposo Pastor Moacir, recebiam a todos e serviam refeições do café, passando pelo almoço, a merenda, a janta, a ceia e às vezes, até a dormida para os mais de casa.

Sobre o casal anfitrião de tantas gentes, não deixaram prole, Dona Areolina era filha de Avelino Luis Gomes e Rosa Lins Ribeiro e era a única representante feminina de uma grande família, pois os outros nove irmãos eram todos homens e curiosamente, os dez irmãos, tinham a letra “A” de propósito no começo dos seus nomes, eram eles: Almiro, Armando, Antônio, Adalgiso, Argemiro, Arlindo, Avelino, Alvino, Aldair e por fim, Areolina. A partir desses dez irmãos foi que surgiu a valorosa família Avelino, tradicional e de muitos descendentes que da Piracuruca se espalharam por Fortaleza e por todo canto.

Já o Pastor Moacir, um sujeito acobreado e forte, era um exímio tocador de violão e costumava ensaiar louvores, nas noites da Piracuruca, para uma fiel plateia de vizinhos, ali mesmo, na calçada da pensão ele dizia em melodia: “…esta é a cena do Caim carnudo do carrancudo filho de Adão, que por inveja e perversidade, sem dó e sem piedade matou seu irmão…” e por aí vai.

Pois bem, apesar do meu jeito mais reservado, lembro que, um movimento certo e que juntava muita gente da mocidade, era quando o sanfoneiro Vicente Marajó se apresentava na casa do Seu Dodô, do outro lado do Rio, no Bairro Guarani. Nesse festivo recinto, também eram famosas as festas de São Gonçalo em que Durval Meneses, na sua gaiatice cantava o refrão: “…São Gonçalo é santo velho, todo mundo é conhecedor, mas São Gonçalo de bengala, só do cumpade Dodô...”.

Porém, tinha uma voz que ecoava nas ondas de rádio dessas bandas de sertão, que dizia: “…inté mesmo a asa branca, bateu asas do sertão, entonce eu disse, adeus Rosinha, guarda contigo meu coração…” Era a Asa Branca, o hino dos nordestinos, do Rei do Baião – Luiz Gonzaga, que já era famoso por essas paradas, e onde passava deixava a alegria e dava ao sertanejo o orgulho de ser nordestino.

Nesse dia eu sai da fazenda com a “Asa Branca” na cabeça, o tempo todo tocando no meu juízo. Quando me aproximei da pensão, vi aquele movimento, era umas 10 h da manhã mais ou menos, e além dos carros de horário, tinha também uma rural parada e uma certa animação. Fui chegando devagar e quando vi não acreditei, era o dito cujo, o Rei do Baião, Luiz Gonzaga estava de passagem pela cidade, me aprocheguei mais ainda e pude tomar um café junto com ele. Na conversa descontraída com os músicos que o acompanhavam, eu soube que o destino dele era Parnaíba, ia se apresentar naquela cidade no final de semana.

Passou um pedaço, ele e seus músicos, entraram na rural e seguiram para a casa do Seu Doca Ribeiro, que vez por outra foi prefeito e sempre se manteve um político de muito prestígio na cidade. Dali, seguiram para Parnaíba. Depois, notícias de lá se espalharam pela região, Gonzaga e seu “Xote das Meninas”, contagiou a todos que foram para a sua apresentação, nos arredores da Praça da Graça. Eu daqui continuei com a minha rotina, mas daquele dia eu nunca esqueci. O dia em que eu tomei café com o Rei do Baião.


Luiz Gonzaga o Rei do Baião.


Prédio onde funcionou a pensão de Dona Areolina, antes e depois.

Na foto antiga, foi quando funcionou o Posto de Higiene da cidade, isso ocorreu antes da pensão de Dona Areolina se instalar no local.
Na foto recente de 19 de maio de 2020, o casarão não existe mais, apenas um velho caminhão estacionado dentro do terreno.

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Contribuições de:
Rodrigo Magalhães, Zilmar Meneses, Sr. Benedito, Maria Avelino, Pádua Marques, Thiago Alves.

Xilogravura da matéria:
https://www.socialistamorena.com.br/o-portador/gonzaga/

Foto Luiz Gonzaga:
https://www.folhape.com.br/diversao/diversao/homenagem/2019/12/13/NWS,125049,71,984,DIVERSAO,2330-PARABENS-SEU-LUIZ-NOSSO-ETERNO-REI-BAIAO.aspx