Hoje é sinônimo de bom gosto e ótimo paladar. Os piauienses sabem com orgulho que na zona rural de Amarante, no Sítio Floresta se produz uma das mais renomadas e tradicionais cachaças do Piauí: a Lira! O sítio fica cerca de apenas seis km do centro da Cidade pela PI-130/BR-343, sendo alcançado através de uma vicinal do lado esquerdo.
Como tudo começou? Não foi um empreendimento súbito, mas na verdade secular e que progrediu aos poucos até alcançar a preferência dos melhores restaurantes piauienses e nacionais. Aliás, o próprio sítio é uma atração à parte. Porém parece que não foi lá que tudo começou, mas na Fazenda Santa Rosa, cerca de 12 km da cidade de Amarante, no mesmo sentido do Sítio Floresta.
ATUAL ENTRADA DO SÍTIO FLORESTA. FONTE: http://cidadeverde.com/temporeal/53745/morre-seu-ze-lira
Há cem anos um repórter do jornal oficial DIÁRIO DO PIAUHY, de Teresina, fez talvez a primeira descrição da fazenda Santa Rosa, cerca de 12 km a oeste da zona urbana, de sua história agrícola e sua eficaz produção de aguardente. A matéria foi publicada por Augusto Ewerton e Silva que na época era juiz de direito na cidade de Amarante, sendo desembargador e eleito Presidente do Tribunal de Justiça do Piauí em dezembro de 1927. Durante este período que exerceu o poder judiciário em Amarante visitou a fazenda Santa Rosa. O depoimento do juiz Ewerton não só importante por ser minucioso, mas por retratar o empreendimento agropecuário em plena florescência, há cem anos. Vejamos o que disse em 21 de julho de 1913, referindo-se então ao Engenho Santa Rosa onde tudo indica havia uma fábrica de aguardente:
Visitei, há poucos dias este importante estabelecimento de propriedade do capitão Francisco José de Lyra, ativo industrial deste Município. A usina dista cerca de duas léguas desta Cidade, à margem do riacho Mulato, afluente do Parnaíba. O passeio, que foi de dois dias proporcionou-me a ocasião de observar de “visu” todos os serviços, o método adotado, a atividade, em suma, de um homem que se multiplica no labor cotidiano, com a coragem yankee, a perseverança inglesa, tirando do seio da terra o tesouro com que há conquistado a popularidade que goza.
O futuro desembargador se referia ao empreendedor Francisco José de Lyra (1864 – ?) que passou a produzir cachaça a partir de 1889, em lugar ignoto, já que a fazenda Santa Rosa teria sido adquirido apenas em 1892 segundo o juiz Everton. E o sítio Floresta, atual fabricante da cachaça Lira, segundo o próprio site www.cachacalira.com.br só foi adquirido pelo empreendedor Francisco Lyra após a grande seca de 1915. Assim, Coronel (ou capitão) Chico Lira, como era respeitosamente chamado, com sua capacidade empreendedora, ao se deparar com a terrível seca de 1915, implementou uma agroindústria moderna o sítio Floresta, onde criou meios de sustentabilidade, de preservação ambiental e uso racional dos recursos naturais, legando esta sabedoria aos seus descendentes. Porém, como dissemos, a descrição abaixo refere-se a fazenda Santa Rosa, onde parece que teve inicio a produção de cana e a usinagem de cachaça.
Segundo a historiadora amarantina Maria Santana Vilarinho Santos o Engenho do Sítio Santa Rosa era de propriedade de seu pai, Pedro Gonçalves Vilarinho. Supomos então que este Sr. Vilarinho tenha adquirido a propriedade do filho do capitão Francisco Lyra, Sr. José Mendes Lira, talvez muitos anos após a implantação do sítio Floresta pois consta em boletim do Instituto de Açúcar e Álcool-IAA de 1951 o nome do sr. Vilarinho como fabricante de açúcar com autorização para produzir também álcool.
ASSINALADOS COM SETAS O SÍTIO FLORESTA E A FAZENDA SANTA ROSA. FONTE: IBGE, MAPA MUNICIPAL ESTATÍSTICO, CENSO 2000.
IMAGEM DO CORONEL LYRA. FONTE: http://www.cachacalira.com.br/pt/historia-sitio.php
Lamentavelmente o articulista se concentra na descrição do moderno processo agrícola empregado, destinando apenas uma linha à produção da aguardente na usina. Prossegue o juiz Ewerton, com ênfase sobre a modernidade do sistema de aração e plantio empregado pelo Coronel:
É de admirar. Por isso, que os jornais indígenas, onde se tem feito notável propaganda sobre os sistemas modernos empregados na lavoura, nada tenham dito sobre o ativo industrial e sua usina, nem tenha sido esta visitada pelos competentes que, por aqui hão passado, fazendo a propaganda, mostrando, com a autorizada palavra, as vantagens decorrentes da efetiva objetivação daqueles sistemas.
Supondo prestar algum serviço ao nosso Estado, fazendo conhecida lá fora a uberdade das terras amarantinas, proponho-me, ainda que incompetente na matéria, a dar uma notinha mais ou menos detalhada do engenho Santa Rosa e da proverbial atividade de seu proprietário.
Santa Rosa é o nome primitivo do antigo sítio. Adquirido em 1892 pelo capitão Francisco Lyra, desde então tem este cultivado o ubérrimo terreno, por meio do qual corre o riacho Mulato, cujas águas ele encaminha, quando preciso, soltando-as depois, para a lavoura adjacente, sem prejuízo para os vizinhos, riacho abaixo, conseguindo montar a usina de que tratamos e consistente de um motor e uma caldeira, força de 15 e 20 cavalos, respectivamente, com evaporadores, a Fogo nu e duas turbinas. O fabrico de aguardente é feito com dois alambiques semi-contínuos.
ÁGUA CANALIZADA DO RIACHO MULATO ATÉ A USINA DO SÍTIO FLORESTA. ALGO SEMELHANTE PODE TER OCORRIDO NA FAZENDA SANTA ROSA.
NO SÍTIO FLORESTA A ÁGUA CANALIZADA DO RIACHO MULATO MOVIA ESTA IMENSA RODA D’ÁGUA, QUE ACIONAVA, POR SUA VEZ OS MOINHOS DE ESMAGAR A CANA. COM O PASSAR DOS TEMPOS FOI ADQUIRIDO UM MOTOR A DIESEL. PORÉM A RODA D’ÁGUA AINDA FUNCIONA, OCASIONALMENTE, PARA DELEITE DOS TURISTAS. NÃO SABEMOS COMO ERA O PROCESSO NA USINA SANTA ROSA.
ESTA ERA A MOENDA, INICIALMENTE MOVIDA A FORÇA HIDRÁULICA E DEPOIS A UM MOTOR A DIESEL. TUDO IMPORTADO DA INGLATERRA. HOJE É SÓ PEÇA DE RECORDAÇÃO DO SÍTIO FLORESTA.
NOS DIAS DE HOJE A MOAGEM NO SÍTIO FLORESTA É FEITA NESTE PEQUENO E MODERNO ENGENHO COM AUXÍLIO MANUAL. FONTE: http://www.faesfpi.com.br/v3/noticias.asp?id=507
O plantio de cana de açúcar é feito em terreno de sua propriedade, inclusive uma parte arrendada, calculada em 157 tarefas, ou seja, 53 hectares.
As safras compensam perfeitamente o trabalho e a atividade com tal perseverança empregados.
Pena é que, em nosso Estado, não haja um banco ou instituto semelhante, que auxilie a lavoura, proporcionando aos agricultores, por hipotecas ou outro meio, os recursos precisos para o desenvolvimento tão de importante indústria; a atividade de homens laboriosos como o capitão Francisco Lyra gira numa esfera acanhada, carecendo de elementos para dilatar a sua ação; daí as dificuldades que lhe antolham os passos na louvável tentativa; daí que o status quo do seu estabelecimento, que poderia ter outra expansão se conseguisse reforma-lo com uma usina completa e aperfeiçoada, economizando lhe tempo e dinheiro e aperfeiçoando lhe maiores vantagens, maiores rendas.
Mesmo assim, o capitão Francisco Lyra, rompendo com a rotina, e a despeito do pessimismo de muitos, acaba por objetivamente no Município, o sistema aratório.
È verdade que antes dele, o capitão Marcolino José Ribeiro em seu sítio Saco, também neste Município, fez experiência do sistema, arroteando com o arado o terreno em que plantou fumo; mas ao capitão Francisco se deve a objetivação definitiva.
Membro da Sociedade Nacional de Agricultura, adquiriu por intermédio desta, os instrumentos aratórios que ora emprega no cultivo de suas ubérrimas terras. Assisti naquela visita o serviço feito com os seguintes instrumentos: um arado de ferro de ferro fundido, sistema “planeta”, sulcador puxado por quatro bois, um dito sistema “Ramsomes”, destorreador, com quatro discos de fabrico inglês; uma grande placa de aço “Ransomes” , de caixilhos maciços, inteiros, dentes também de aço, ligados fortemente a ela por porcas de parafusos, colocados em distâncias iguais, de modo que traçam sulcos uniformes.
Além desses instrumentos, possui mais o capitão Francisco Lyra os seguintes: uma charrua ligeira “Ramsomes”, com uma roda, para revolver terrenos de atração reduzida; um arado de dois discos para o mesmo mister, fabrico inglês; e um cultivador “planet”.
IMAGEM ILUSTRATIVA DE UMA DAS MÁQUINAS ANTIGAS DO CAPITÃO LYRA UTILIZADO NA FAZENDA SANTA ROSA. REPRODUÇÃO
O nosso industrial, no arroteamento dos terrenos de sua lavoura, não tem empregado o arrancador de tocos, de que ainda não fez aquisição, por julgá-lo desnecessário, visto que é este serviço feito pelos trabalhadores; os tocos, devido à ação das águas fertilizam as terras e se tornam de fácil extração. O terreno até agora arado é de cerca de trinta tarefas.
O serviço aratório é dirigido pelo Sr. Manoel Pereira de Lyra (Manúca) irmão do capitão Francisco Lyra e que é um curioso mecânico, de força hercúlea. Ele é que tem montado os instrumentos aratórios que chegam para o estabelecimento, manejando, muitas vezes, o martelo na forja da usina, no concerto de uma peça do respectivo mecanismo. Lá o vi, no serviço aratório, trajando blusa e calça de brim escuro e calçando botinas grosseiras, dando impulso ao arado sulcador e ao mesmo tempo instruindo os trabalhadores que puxavam os bois, botinas e calças enlameadas, o suor a correr-lhes sob os raios caniculares do sol. É importante auxiliar do capitão Francisco Lyra e devido ás suas instruçãos, já sabem dirigir o arado alguns dos trabalhadores da usina.
O nosso industrial, para fertilização das terras de sua lavoura, não precisa de importar adubos, o que já é uma importante economia. As águas do riacho Mulato são veículos de adubos naturais , consistentes em detritos de lavoura, que o riacho traz de outros sítios e que as suas águas desviadas do, leito depositam pelos terrenos para onde são encaminhadas.
Verifica-se que os sulcos feitos com enxada, num terreno arroteado, em duas horas, por dez homens para o plantio de cana de açúcar, por exemplo, são abertos em meia hora quando muito, pelo arado sulcador, ocupando apenas três homens, donde se conclui que é grande a economia que trás tão importante sistema.
Além da lavoura de cana de açúcar, por exemplo, o capitão Francisco Lyra cultiva também a laranjeira e cacauzeiro, algumas espécies de ananás, como seja o abacaxi, cultura que se adapta perfeitamente às terras de Santa Rosa. As laranjeiras, porém, atacadas da doença cientificamente denominada hipochum Michelianus, cujo fungo multiplicando-se e produzindo germens microscópicos esporosos pelos ramos da árvore, acaba por mata-la, se a tempo não lhe aplicar o tratamento recomendado pela ciência. O capitão Francisco Lyra conhece esse tratamento pela descrição que do mesmo faz o boletim “Lavoura”, da Sociedade nacional de Agricultura. Mas não podendo distrair o seu precioso tempo, resolveu abandonar a cultura dessas laranjeiras, substituindo-a pela das tangerineiras que já frutificam ali com prodigiosa abundância e são imunes àquela enfermidade.
O nosso industrial tem constatado também que as terras de Santa Rosa se prestam ao cultivo do cafezeiro, a julgar por um que há no sítio e carrega muito.
Eis aí a descrição, posto que feita por incompetente na matéria, da importante usina Santa Rosa e da prodigiosa atividade de seu proprietário.
O nosso industrial capitão Francisco Lyra, que, aliás, não teve cultivo intelectual, tem conseguido, no entanto, como se vê, dar tal impulso á lavoura do Município, merecendo, portanto, francos economios. Com a intuição que tem do trabalho probo e honrado, ele tem cooperado para a ocupação de muita gente que poderia estar na ociosidade, pois em santa Rosa os dias úteis da semana são empregados exclusivamente no trabalho, com as horas recomendadas para o descanso. O suor que corre pela fronte dos trabalhadores não traz mescla do alcoolismo porque ali é expressamente vedado durante os serviços o uso pernicioso do álcool. Os salários de seus trabalhadores paga-os conscientemente o capitão Francisco Lyra no fim da quinzena. Voltam ás suas moradias satisfeitos os trabalhadores para o descanso do domingo.
Fica em paz com a sua consciência o nosso industrial, que merece ainda elogios pela caridade que sabe dispensar aos seus trabalhadores quando caem doentes, ou são vítimas nos serviços da usina, transformando-se assim o patrão em benfeitor.
Não sabemos quando nem em que circunstâncias em que a usina de cachaça da Fazenda Santa Rosa passou para o sítio Floresta (1915?).
O seu José Lira Mendes, falecido aos 97 anos em 2013, foi o continuador da obra de seu pai capitão Chico Lira, agora no sítio Floresta, modelo de empreendedorismo e compromisso com o desenvolvimento. Suas ações resultaram na instalação de um engenho movido a energia gerada na própria fazenda, que no século passado chegou a abastecer parte de Amarante. Hoje o engenho da fazenda produz a cachaça Lira, produto consagrado no mercado. Criou uma variedade de manga, batizada de lira. Foi exemplo de pai e homem destemido na adoção de tecnologias inovadoras para o campo.
Visitamos a fábrica de aguardente Lira por duas vezes, no início dos anos 2000. Ali fomos gentilmente recebidos pelo Sr. José Lira e esposa, que guarda algum parentesco com nossa família amarantina.
VISTA PARCIAL DAS EDIFICAÇÕES DO SÍTIO FLORESTA.
DA ESQUERDA PARA DIREITA: UM FUNCIONÁRIO DA USINA, O AUTOR DESTA MATÉRIA, SR. JOSÉ LIRA MENDES E ESPOSA.
Ali nos inteiramos do moderno processo de fabricação da cachaça, agora algo de tecnologia bem mais avançada do que na época do Capitão Francisco Lyra.
Com o falecimento do Sr. José Lira Mendes em 2013, assumiu o comando da produção agroindustrial seu filho, Haroldo Lira, a terceira geração no comando.
SR. HAROLDO LIRA, O TERCEIRO DA FAMÍLIA NO COMANDO DO SÍTIO FLORESTA. FONTE: http://www.faesfpi.com.br/v3/noticias.asp?id=507
Segundo Haroldo Lira, a Cachaça Lira nasce de uma cana produzida de forma orgânica, método que garante a matéria-prima de elevada qualidade, além de respeitar o meio ambiente. Suas características especiais são obtidas e potencializadas nas criteriosas técnicas de corte, lavagem, moagem, fermentação, destilação em alambique de cobre e armazenagem em tonéis de madeira, onde permanece por vários anos.
As etapas envolveram as técnicas de corte, lavagem, moagem, fermentação, destilação em alambique de cobre e armazenagem em tonéis de madeira, a qual permanece por vários anos.
O plantio e manejo da cana de açúcar é feito de forma orgânica, sem uso de adubos químicos e agrotóxicos. “Colhemos a cana de forma manual, sem a prática da queima, a despontamos e despalhamos no próprio canavial, e fazemos uma rigorosa seleção e limpeza”, acrescenta.
A Lira é armazenada em tonéis de Castanheira, madeira considerada o “carvalho” brasileiro, de 700 litros, onde permanece por um período mínimo de 12 meses. Para Haroldo Lira, o resultado final do envelhecimento da Lira é o aprimoramento das características de sabor, aroma, brilho, maciez e cor. Ele disse ainda que a Lira após o processo de envelhecimento é homogeneizada, filtrada e engarrafada, mantendo as características de uma cachaça artesanal, produzida com os mais altos padrões de higiene e qualidade. Ele ainda destacou que produz, em média, 60 mil litros de cachaça, que ganham mercado em estados nordestinos e até em Santa Catarina, no Sul do País.
EXEMPLAR DA DELICIOSA CACHAÇA LIRA.
Na produção da Cachaça Lira, os resíduos são todos aproveitados, evitando, assim o impacto ambiental. A ponta da cana é utilizada na alimentação de animais; o bagaço da cana é serve como combustível para a caldeira, alimentação de animais e adubação. O vinhoto também vai para a alimentação de animais e fertilização do canavial.
Fontes:
http://cidadeverde.com/temporeal/53745/morre-seu-ze-lira
http://www.cachacalira.com.br/pt/historia-sitio.php
http://www.faesfpi.com.br/v3/noticias.asp?id=507
Jornal DIÁRIO DO PIAUHY, Teresina, 03 de agosto de 1913.
Boletim do Inst. Do Açúcar e do álcool-IAA, vol. XXXVIII, nº 1, julho de 1951.