Esperança Garcia

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A escrava Esperança Garcia viveu na região de Oeiras na fazenda de Algodões, a mais ou menos 300 km de Teresina, propriedade esta que juntamente a outras dezenas de estâncias pertenciam à inspeção de Nazaré, onde é hoje o município de Nazaré do Piauí. Era uma das fazendas confiscadas dos jesuítas a mando do Marquês de Pombal (1790-1982) em 1759.

Apesar de sua revolucionária importância histórica, não se sabe quase nada sobre sua vida. O pouco que se sabe foi o suficiente para inserir a escrava na triste história da escravidão no Brasil. Esperança se destacou por ter sido corajosa a ponto de escrever uma carta ao governador do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro (? – ?), denunciando os maus tratos sofridos por ela, seus filhos e companheiras. A carta é datada de 06 de setembro de 1770.

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 PODEMOS IMAGINAR ESPERANÇA COMO UMA DESTAS ESCRAVAS. REPRODUÇÃO.

Afirma-se que a carta original está em Portugal, e uma cópia foi descoberta no Arquivo Público do Piauí pelo pesquisador e historiador Luiz Mott (n.1946) em 1979. Diz o pesquisador:

Outra minha importante descoberta arquivista foi um pequeno documento, uma única página escrita à mão, todo cheia de garranchos com muitos erros de português: trata-se de uma petição escrita em 1770, por uma escrava do Piauí, Esperança Garcia. Trata-se do documento mais antigo de reivindicação de uma escrava a uma autoridade. Documento insólito! Primeiro por vir assinado por uma mulher, já que mulher escrever antigamente era uma raridade. As mulheres eram vítimas da estratégia de seus pais, mantê-las distante das letras, a fim de evitar que elas escrevessem bilhetinhos para os seus namorados. Segundo, por se tratar de uma petição escrita por uma mulher negra.

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 LUIZ MOTT DURANTE PALESTRA SOBRE ESCRAVIDÃO NO CENTRO DE ARTESANATO DE TERESINA. FONTEE:  www.cidadeverde.com

Segue abaixo o modelo original da carta e sua versão atualizada ortograficamente: 

Original:

Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q. me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.S. pello amor de Ds. e do seu Valimto. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha q. 

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia 

Texto atualizado

Eu sou uma escrava de V.Sa. administração de Capitão Antônio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões, aonde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.S. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda aonde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.

De V.Sa. sua escrava, Esperança Garcia”

Segundo Valduce Sousa, a carta, em si, é um documento linguístico de pura beleza se se levar em consideração quem, quando e por que ela foi escrita.  Trata-se de um documento digno e merecedor de conhecimento e estudo, pois podemos perceber nesta carta, além da história da civilização, a evolução histórica da língua e até mesmo alguns termos utilizados nas novas ferramentas de comunicação. Esperança, em sua aflição, produziu mais que uma fonte histórica para pesquisa de escravidão neste Estado, produziu uma pérola para se estudar o português dos séculos XVIII. 

Há um ponto notável neste manuscrito: em 1770 pouquíssimas pessoas sabiam ler e escrever não só no Piauí como em todo o país. Em zona rural ainda mais. E surpreende que uma escrava já tivesse intimidade com a escrita. Torna-se espantosa a origem da alfabetização de Esperança. Ora, ela, como escrava, fazia parte das fazendas dos jesuítas antes do confisco, provavelmente alguém, talvez um daqueles padres, por exemplo, teria ensinado a escrava a ler e escrever. E ela deve ter aprendido isto na fazenda Algodões, onde parece ter tido uma vida suportável, já que sua petição almeja seu retorno da fazenda para onde foi levada para aquela propriedade. Segundo Mott a condição de Esperança Garcia sinalizava para uma sociedade tolerante e amistosa com o escravo. Ou pelo menos seria assim nas fazendas jesuíticas.

Para o Prof. Dr. da UESPI/ UFPI, Élio Ferreira de Sousa (citado por Mott), que estuda a temática do negro na literatura, ...Esperança Garcia é uma exceção, porque era proibida a leitura para escravo; quem fosse flagrado ensinando escravo a ler era preso e/ou processado. Ela escreveu a carta um ano depois que os jesuítas, de quem era escrava, foram expulsos do Brasil por Marquês de Pombal. 

Segundo Mott, salvo engano, seria a segunda carta mais antiga até agora conhecida no Brasil manuscrita e assinada por uma escrava negra, e que revela não só os sofrimentos a que estavam condenados os cativos, como o fato de já nos meados do século XVIII haver mulheres negras alfabetizadas e suficientemente “politizadas” para reivindicar seus direitos e denunciar às autoridades os desmandos de prepostos mais violentos.

Resta uma pergunta: o governador da Província atendeu o apelo de Esperança? Vejamos o que diz Valduce:

Fica, porém, a dúvida se o Presidente da Província teria atendido ao pedido da escrava. Todavia, é digno de nota que a carta foi arquivada na antiga capital Oeiras, e depois, trazida para Teresina, quando da mudança da Capital. Sua preservação até hoje, parece indicar deferência para com Esperança Garcia e com seu corajoso e grandioso gesto.

Segundo o jornalista Cláudio Barros a cópia do manuscrito, bem conservada, estava sob a guarda da Casa Anísio Brito, o Arquivo Público do Piauí. Era mantido em uma caixa vitrificada, para que gerações futuras apreciassem esse tesouro. Infelizmente desapareceu, tirando da posteridade piauiense um riquíssimo patrimônio histórico e cultural.

Esse documento serviu de inspiração para diversas manifestações contemporâneas como o grupo de mulheres que trabalham pela cidadania da mulher negra piauiense, e recebe o nome de Esperança Garcia assim como a maternidade de Nazaré do Piauí e a data desta carta é o Dia Estadual da Consciência Negra no Piauí desde 1999. 

Fontes:

Barros, Cláudio. Sumiço da Carta de Esperança Garcia mostra o pouco caso que se dá à História In: http://www.meionorte.com/frenteampla/sumico-da-carta-de-esperanca-garcia-mostra-o-pouco-caso-que-se-da-a-historia-286396.html

http://esperanca-garcia.blogspot.com.br/p/esperanca-garcia.html

http://www.meionorte.com/josefortes/a-coragem-da-escrava-esperanca-garcia-103428.html

Sousa, Valdulce Ribeiro Cruz. A carta da escrava piauiense Esperança Garcia: uma análise sociolinguística. In: www.gelne.org.br/site/arquivostrab/1224-artigo_valdulce.pdf‎