De fato, é compreensível que com tantos anos de existência, essa casa tenha acumulado tantas histórias e tenha sido testemunha de tantas ocorrências e vivências, sejam reais ou fantasiosas. O incontestável é que o seu legado centenário, cheio de riquezas, materiais ou não, está enraizado na mente das pessoas e é aí que está o principal valor do lugar. Assim, todos os entrevistados e participantes dessa matéria são unânimes em demonstrar a sua tristeza pelo estado que se encontra a casa, ao mesmo tempo, nutrem esperanças de vê-la com a sua utilização revigorada.
Distante cerca de 7 km, a partir do povoado piracuruquense do Vamos Vendo e localizado na ZA (Zona de Amortecimento) do Parque Nacional de Sete Cidades, se encontra um dos mais lendários e misteriosos lugares da região de entorno do Parque. É conhecido por: “A casa velha dos escravos do Bom Gosto”. Essa é a denominação que essa antiga e rústica casa recebeu, e que a tradição oral se encarregou de propagar de uma geração a outra por várias décadas e alguns séculos também.
A casa fica dentro do território de Piracuruca – Piauí.
Antiga estrada de comboieiros, tropeiros e boiadeiros:
Visitamos o local, através de uma trilha de bike, no dia 4 de janeiro de 2020, o acesso é através de uma antiga estrada com muitas pedras soltas e travessias de riachos. No caminho, passamos bem próximo ao Morro do Bom Gosto, o ponto mais alto da cidade de Piracuruca, com uma elevação de aproximadamente 300 metros de altura.
Rota da trilha até a “Casa velha dos escravos do Bom Gosto”.
Companheiros da Trilha: Nonato Araújo, F Gerson Meneses, Osiel Monteiro (Curiólogo) e Índio Apache.
Escalando o morro do Bom Gosto, o ponto mais elevado da cidade de Piracuruca.
Em breve no Portal Piracuruca e no canal Check’in Aventura, faremos uma matéria sobre o Morro do Bom Gosto.
Por essas trilhas, onde hoje passam os aventureiros, no passado era uma rota de comboieiros e tropeiros que levavam e traziam mercadorias e talvez até escravos. Em um trânsito comercial primitivo entre a Serra da Ibiapaba e o norte do Piauí. Também era rota de boiadeiros, que nas épocas de seca no Ceará, traziam o gado pra essa região, para escapar nos diversos olhos d’água de onde hoje é o Parque Nacional de Sete Cidades.
As antigas trilhas que levam à “Casa velha dos escravos do Bom Gosto”.
Chegando na casa, um cenário desolador e detalhes que contam a nossa história:
Ao chegarmos à casa nos deparamos com um cenário desolador. Após anos desocupada a velha estrutura está sucumbindo, ainda estão de pé as suas grossas paredes de pedra, daí vem a sua sustentação e durabilidade.
Finalmente, de frente com a “Casa velha dos escravos do Bom Gosto”.
No entanto, é entrando na velha casa que voltamos no tempo, na parte interna está um verdadeiro laboratório de pesquisa. Numa análise sobre a velha casa, contamos a história do povoamento do Piauí sobre vários aspectos.
Alguns detalhes da parte interna da casa: em “a” as grossas paredes de pedra com aproximadamente 60 cm de largura, construídas sem cal e sem cimento; em “b” chifres de gado afixados nas paredes e usados como armadores de rede e cabides; em “c” vários oratórios e rústicos armários espalhados pela casa e finalmente em “d” um registro de datação em uma telha da década de 1860.
De acordo com o Historiador e Ambientalista Nonato Araújo:
Chama a atenção a arquitetura rústica e resistente da casa, assim como a sua religiosidade representada nos vários oratórios espalhados. O chifre usado como cabide, um elemento extraído do componente fundamental para a colonização do Piauí, o boi. Toda uma riqueza de detalhes, carnaúbas usadas no teto, símbolo do extrativismo. A casa tem todos os elementos que representam a colonização do Piauí. Uma análise aprofundada sobre a casa, pode se reconstruir a própria história do Piauí.
Um outro elemento que chama a atenção é o curral da casa, também de arquitetura rústica, tanto o curral como uma extensa e primitiva cerca de pedra que demarca toda a propriedade.
Curral de pedra da “Casa velha dos escravos do Bom Gosto”.
Vista de parte da cerca de pedra que demarca a propriedade do Bom Gosto. Visão de cima do morro do Bom Gosto.
De acordo com o Sr. Francisco de Assis, conhecido na região como Nanô:
Existe um entendimento passado por meus avós de que aquela casa é tão antiga que chega a ser anterior à própria Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo em Piracuruca que é datada de 1743, meus avós contavam que aqui por perto não havia cidade. Tinha um movimento de comboieiros, escravos e ciganos passando por essa estrada velha do Bom Gosto, vindos de Viçosa do Ceará. Os chifres nas paredes, são pequenos e finos, são de gado puro, os primeiros rebanhos que foram trazidos pra cá.
A inscrição misteriosa, a morte dos escravos, as luzes e as botijas:
Segundo ainda o Sr. Nanô, até a década de 1970 ele ainda chegou a ver uma pedra com umas inscrições em algarismos. Essa pedra talhada ficava a uns 3 metros de altura em um dos quartos da casa, conhecido como “quarto dos escravos”, segundo ele, era uma datação, mas ele não lembra qual era.
A existência dessa pedra com inscrições também é confirmada por Osiel Monteiro (Curiólogo) guia turístico do Parque Nacional de Sete Cidades e também morador da região, seus ancestrais também viveram na região e inclusive foram os primeiros funcionários do Parque, quando foi inaugurado em 8 de junho de 1961.
Antigos registros da época da criação do Parque Nacional de Sete Cidades.
Colaboração: Thiago Alves (Piracuruca Túnel do Tempo).
De acordo com o Curiólogo:
Os meus antepassados também falavam dessa pedra com a gravura, alguns chegaram a dizer que a data era referente a algum ano do século 1700. Ficava aqui nesse quarto, o quarto dos escravos. Minha prima morou na casa por vários anos e nesse quarto ela não entrava, era porta sempre fechada, quarto isolado, quando ela veio já havia a história de que dois escravos havia sido mortos de cabeça pra baixo dependurados, era chamado por todos de “o quarto escuro”.
As histórias, lendas e mistérios da velha casa não se resumem somente à pedra com a gravura, que tomou um destino ignorado, ou ao quarto, onde supostamente tinham morrido os dois escravos, vai muito mais além. Ainda sobre o “quarto escuro”, uma neta do Sr. Raimundo Inácio (último proprietário da casa), de nome Sandra Maria de Aguiar Coelho, afirma um dia ter visto uma mão vermelha, bem no alto da parede desse quarto. Nonato Araújo também fala: “na época não havia banco, então os homens e mulheres de posse guardavam seus valores de moedas e joias em baús ou potes. Daí enterravam esses objetos ou escondiam nas paredes dos casarões, eram as chamadas botijas”.
De fato, a lenda das botijas são comuns no interior do nordeste, diz que a após a morte, o dono da botija vinha entregá-la para alguém, e essa pessoa que recebeu e aceitou, ao desenterrar o tesouro deveria desaparecer do lugar. Segundo ainda Curiólogo: “há notícias de que pelo menos 4 dessas botijas foram desenterradas na casa, tanto na parte interna como também uma que foi tirada na beira da estrada, perto da casa”.
A lenda das botijas da casa, também é confirmada pelo Sr. Nanô, segundo ele: “Lá apareciam e desciam luzes, como que demarcando os lugares das botijas…na época que eu trabalhei no IBAMA, eu cheguei a ver o colo de um pote, que tinha sido arrancado…o pior mesmo foi quando eu estava trabalhando lá e ao cavar, encontrei o braço de uma pessoa…ali morreu muita gente”.
Curiólogo mostra um dos lugares onde foi desenterrada a botija dentro da casa.
Raimundo Inácio de Aguiar, o último proprietário, tinha um grande apreço pela casa:
Por último, a partir de meados da primeira metade do século passado, a propriedade passou a ser do Sr. Raimundo Inácio de Aguiar. Fizemos há pouco tempo uma matéria sobre a Fazenda Belmonte, cuja propriedade também era do Sr. Raimundo Inácio. Acessando o link no final dessa matéria você conhecerá a história desse cearense que após trabalhar nos seringais do Acre, veio para o Piauí e se tornou um grande ruralista e progenitor de uma grande família que hoje se espalha pelo Brasil.
Registro de 1950 do último proprietário da Fazenda Bom Gosto, Sr. Raimundo Inácio de Aguiar (1880 – 24/09/1964) com a neta Sylvia Maria de Aguiar Coelho. Ao lado, a Sra. Maria Elias de França Aguiar (Dona Mocinha) (08/07/1900 – 25/09/1989), esposa de Raimundo Inácio de Aguiar.
De acordo com o Sr. George Alberto de Aguiar Coelho, neto de Raimundo Inácio:
Tenho pra mim que o Bom Gosto era um ponto de passagem de vaqueiros transportando boiadas, para levar para Piracuruca e Piripiri ou para escapar da seca, porque ali é um cerrado. Creio que a casa ficava numa rota de transporte de gado e mercadorias envolvendo principalmente as cidades de Parnaíba, Piracuruca, Piripiri e Viçosa no Ceará. Discordo da denominação de Casa dos Escravos, acho que isso é lenda. Creio que ela foi construída por caboclos que ali moravam, os proprietários que provavelmente apoiavam e davam dormida para comboieiros, se fosse casa de escravos, seria uma senzala e aí haveria a Casa Grande, além do mais, não vejo população negra no Piauí. A formação genética do piauiense é derivada do cruzamento entre índio e português dando origem ao caboclo, essa história de escravos não me parece corresponder com o que vejo. Uma coisa interessante também é que a casa tem peculiaridades no arranjo das pedras próprio de algum artesão hábil.
Meus avós mandavam o gado do Belmonte para o Bom Gosto no período seco, eram conduzidos a pé pelos vaqueiros do Belmonte, afora o barbatimão florescido no Bom Gosto e que mata o gado e mais cascavéis, diziam que no verão eles se davam bem na “puba” como chamavam aquele meio ambiente, porém no inverno a puba adoecia o gado, muitos “entrevavam”. Puba em linguagem Tupi-Guarani significa fermentado, apodrecido. Entrevar é um problema que dava nas articulações do gado. Por outro lado, minha avó usava o barbatimão do Bom Gosto e mais sebo de gado e soda cáustica pra fazer sabão pra usar no cotidiano da Fazenda Belmonte.
Sr. George Coelho, ainda destaca que seu avô Raimundo Inácio tinha um xodó pelo Bom Gosto, dizia que a propriedade tinha nove olhos d’água e que, se algum neto a herdasse, não a vendesse. Completa dizendo que a fazenda foi herdada por sua mãe Aldenora. Dona Aldenora chegou a residir em Piracuruca e entre os anos de 1950 a 1958 manteve uma farmácia em sua residência, uma casa próxima à Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, essa casa ainda hoje pertence à família.
Antiga foto da Igreja Matriz e parte do seu entorno, em destaque, a casa onde residiu e funcionou a farmácia de Dona Aldenora, nos anos 1950.
Fonte: Arquivo Público do Piauí – Colaboração: Thiago Alves (Piracuruca Túnel do Tempo).
Registro de 1953, foto tirada por Adauto Coelho, esposo de Aldenora. Nessa foto, Aldenora está na Praça Irmãos Dantas, próxima à sua casa, com os filhos Sylvia e Raimundo Inácio.
Foto de Adauto Coelho, década de 1950, mostra a Rua da Goela a partir da frente da residência e farmácia de Dona Aldenora.
Os atuais desafios da “Casa velha dos escravos do Bom Gosto”. O turismo rural seria a saída?
Três momentos da velha casa. Em “a” no ano de 2004, ainda em franca atividade, inclusive com a criação de gado; em “b”, no ano de 2009 já mostrando um certo abandono e por último em “c”, no ano de 2015, já seriamente comprometida.
Segundo o Sr. George Coelho: “O problema de conservá-la, foi não ter conseguido ninguém pra habitá-la. E a reconstrução se tornou inviável economicamente. Tentei até fazer levando carnaúbas para o local, mas desisti por falta de tempo e pela grande dificuldade. Reconheço que o Bom Gosto sempre foi um lugar difícil de se conservar porque é isolado. Mas, mesmo assim ainda penso em reparar pelo menos parte da sua estrutura”.
De fato, uma saída para a restauração e revitalização da casa seria a sua adequação e uso para a prática do turismo rural. E é para isso que o Sr. George Coelho está aberto, para alguém ou alguma organização que queira utilizá-la neste sentido.
“É compreensível que com tantos anos de existência, essa casa tenha acumulado tantas histórias e tenha sido testemunha de tantas ocorrências e vivências, sejam reais ou fantasiosas. O incontestável é que o seu legado centenário, cheio de riquezas, materiais ou não, está enraizado na mente das pessoas e é aí que está o principal valor do lugar. Assim, todos os entrevistados e participantes dessa matéria são unânimes em demonstrar a sua tristeza pelo estado que se encontra a casa, ao mesmo tempo, nutrem esperanças de vê-la com a sua utilização revigorada.”
Vídeodocumentário sobre a “Casa dos Escravos do Bom Gosto”:
Artigo sobre a Fazenda Belmonte:
Videodocumentário sobre a Fazenda Belmonte: