Sob o signo da fé: Os Dantas Correia, a lenda e a igreja de N. S. do Carmo de Piracuruca

O alvorecer do século XVIII vai encontrar os vales e chapadas do norte do atual território do Piauí já submetidos a fortes devassamento e ocupação por parte do elemento branco, quase sempre em brutal conflito com o gentio nativo das diversas nações tapuias, ali existentes. Os relatos dos poucos cronistas que versam sobre a época, dentre os quais Pereira da Costa[2], Capistrano de Abreu[3] e Cláudio Melo[4], noticiam que essa ocupação se inicia ainda no último quartel do século XVII, tendo, como marco referencial, as expedições exploratórias comandadas por João Velho do Valle[5], pelos idos de 1685.

A escrita da história noticia que Valle realiza, pelo menos, duas viagens, a partir do Estado do Maranhão e Grão Pará, por encomenda do então governador Gomes Freire, com vistas à descoberta de caminhos alternativos por terra para a Bahia e Pernambuco. Na primeira viagem, Valle alcança a missão jesuítica da Ibiapaba, deixando três estradas conhecidas[6], sendo que uma delas, muito provavelmente, tem percurso pelas várzeas dos rios Longá e Piracuruca[7], no sentido foz-nascente.

Há registros de que, desde período anterior a 1701, posseiros já travam ferozes batalhas contra os primitivos ocupantes da terra – Tremembés[8], Alongases[9], Tocarijus[10] e Tabajaras[11], dentre outras nações – resultando na dizimação ou expulsão desses povos do território em questão. As concessões de cartas de datas de sesmarias dos sítios apossados na região são levadas a termo primeiro pelo governo da Capitania de Pernambuco, até as duas primeiras décadas, e, depois, pelo Estado do Maranhão e Grão Pará, a partir de 1721, sucedendo-se à ocupação da terra. Dentre os primeiros sesmeiros, registra-se o padre João da Costa Pereira[12], que recebe, em 1715, carta de data de sesmaria no Sítio Nossa Senhora da Vitória, nas proximidades da barra do rio Piracuruca junto ao Longá. Por volta de 1719, parte da planície que se descortina trinta léguas abaixo das nascentes do Piracuruca é ocupada por Miguel Rodrigues da Silva, ali instalando sua fazenda Sítio Novo. A posse provisória da propriedade é concedida à Silva somente em 20.07.1739, conforme atesta o registro abaixo:

João de Abreu de Castel Branco do Conselho de Sua Magestade governador e Capitão General do Estado do Maranham faço saber aos que esta minha Carta de Datta e Sexmaria virem que Miguel Roiz’ da Silva me Reprezentou que elle possuhia huma fazenda de gado vacum no Citio Novo, assima chamado no Rio Piracurecca e por ele assima; principiando nas testadas da fazenda São João em diante, Cuja povoação foi fabricada há vinte annoz, e porque pertendia possuir o dito Citio com justo titulo; me pedia fosse servido Conceder lhe […] tres Legoas de terra de comprido e huma de largo […]. Dada na Cidade de São Luis do Maranhao aos vinte dias do mês de julho anno do nascimento de Nosso senhor Jesuz Christo de mil settescentos trinta e nove[13].

Além do padre João da Costa e de Miguel Rodrigues, muitos são os posseiros que ocupam as ribeiras do Piracuruca, do Jacaraí e de seus vários afluentes, bem como as terras altas mais próximas. Considerando-se somente os atos levados a termo pelo governo do Estado do Maranhão e Grão-Pará, foram expedidas diversas cartas de datas de sesmarias na região, confirmando, ainda que provisoriamente, a posse da terra já ocupada. Tal processo leva Antônio Gonçalves de Carvalho[14] e Manoel Gonçalves de Carvalho[15] à se fixarem nas margens do Jacaraí, rio acima, até as fraldas da Ibiapaba. Também no vale do Jacaraí, instala-se Antônio Pinto[16]. João Baptista assenta seu curral nas margens do Santa Catarina, riacho abaixo[17]. Na ribeira do Piracuruca, instala-se Lourenço de Nazareth[18]. Manoel Baptista escolhe as fraldas da Ibiapaba para sua fazenda de criar[19]. Na passagem da Alagoa da Carapina, confrontando com os Buritis e o sítio Rosário, assenta-se Manoel Fernandes Campos[20]. João de Albuquerque Cavalcante situa sua fazenda às margens do riacho Faveira de Santa Catarina[21]. Na data Rosário, se estabelece Anna de Abreu Valadares[22] João da Cunha de Carvalho passa a criar seu gado nas proximidades do rio Piracuruca[23] No sítio São João, se instala Feliciana da Sylva e Sampaio[24]. Antônio Mendes da Silva assenta seus currais na barra do Genipapo, proximidades da ribeira do Piracuruca[25]. Ainda nas terras que margeiam o rio Jacaraí se instala Theodósio dos Remédios Antoninho[26]. Anna Pereira também se apossa de data na freguesia de Nossa Senhora do Monte do Carmo de Piracuruca[27] Nos Tinguís, Bento Correia da Costa, estabelece sua fazenda[28].

A análise da documentação de concessões de datas de sesmarias na região levam à constatação de que, de fato, a grande maioria dos sesmeiros e (ou) seus vaqueiros já ocupam o espaço requerido há muito tempo, alguns há cerca de vinte anos, estabelecendo seus currais de criação do gado vacum e praticando uma agricultura extensiva e incipiente, apenas para a subsistência. Com a intensa movimentação de homens e produtos oriundos de suas atividades e necessidades, pode se supor que ali, em terras da fazenda Sítio Novo, fez-se desenvolver um pequeno núcleo urbano, ainda nos dois primeiros decênios do século XVIII, tendo como ponto essencial uma pequena capela. Essa hipótese guarda coerência com um fato inusitado: a transferência de uma imagem de Nossa Senhora do Monte Serrathe de sua ermida, na fazenda de Pedro Barbosa Leal (atual Porto das Barcas, Parnaíba, Piauí) para Piracuruca, em 1713, por precaução de seu benfeitor, em face dos constantes ataques de grupos silvícolas da nação Tremembé[29]. A freguesia de Nossa Senhora do Monte do Carmo de Piracuruca é criada, provavelmente, entre 1722 e 1723, tendo sua jurisdição desmembrada de Santo Antônio de Surubim[30].

A tradição oral, reverberada por alguns autores, menciona que, entre os anos de 1718 e 1722, possivelmente, a pequena comunidade de sesmeiros e posseiros da região tem sua rotina alterada significativamente com o início da construção de um magnífico templo, consagrado à Virgem do Monte do Carmo. Seus supostos benfeitores, a princípio, seriam dois irmãos portugueses, Manoel Dantas Correia e José Dantas Correia, em cumprimento a uma intenção oblativa. A versão que faz alusão a um milagre, no curso dos anos que se sucedem ao fato, adquire força e contornos de uma curiosa lenda, que Anísio Brito assim narra:

Dois portugueses – Manoel Dantas Correia e José Dantas Correia, em princípios do século XVIII, se internaram nos sertões piauienses, explorando o vasto território da então capitania ainda sem autonomia. Riquíssimos, os dois aventureiros, depois de muito andarem e sem que receassem perigos sem conta que lhes poderia sobrevir, caíram inesperadamente em mãos dos selvagens que o aprisionaram. Eram índios antropófagos, habitantes do litoral, e, logo os dois prisioneiros consideraram sobre a miserável sorte a que eram destinados, prisioneiros que estavam, daqueles bárbaros. Na emergência, desenhando-se-lhe na imaginação o momento lúgubre em que iriam servir de repasto, sem outro recurso para reaver a suspirada liberdade, volveram-se aos braços consoladores e, às vezes, infalíveis, da fé: fizeram um voto a N. S. do Carmo de lhe mandarem construir majestoso templo, naquele local, onde se achavam prisioneiros, se a excelsa virgem lhe salvasse a vida. A virgem operou o milagre: recuperaram a liberdade os irmãos Dantas. E a construção do templo teve início”[31].

Em aditamento à lendária narrativa, de amplo domínio e aceitação e até motivo de orgulho popular, os irmãos Dantas Correia, ao retornarem à região do milagre para materializar o cumprimento da promessa, cometem um equivoco quanto ao exato local do aprisionamento, iniciando as fundações do templo dali a alguns quilômetros, rio abaixo. Eis que, atenta à ação de seus fiéis devotos, a representação da Virgem do Monte Carmelo – trazida de Portugal e mantida em oratório provisório junto ao canteiro da obra – não aceita, passivamente, aquele grosseiro erro. Conta-se que, com o intuito de evidenciar a falha cometida, a imagem da Santa desaparece de seu altar improvisado, por diversas noites seguidas, sendo encontrada postada sobre a rusticidade de um tronco de carnaubeira, na exata coordenada geográfica da ocorrência milagrosa. Convencidos, enfim, pela Virgem, de seu engano, os construtores abandonam aquelas primeiras fundações, já bastante adiantadas, reiniciado a construção do magnífico templo, assentado no perímetro indicado, com dimensão de 30 metros de comprimento por 18 metros de largura. A esse respeito, não raro, antigos moradores de Piracuruca fazem alusão aos velhos alicerces, em um lugar chamado de “Igreja Velha”.

Pode-se entender que, como gênero literário ou fonte de conhecimento, a lenda é comumente considerada uma forma degenerada do mito. Uma vez aceita pela crença dominante e incorporada à cultura de uma sociedade, ela ocupa as lacunas eventualmente deixadas pelo fazer histórico quando esse não dá conta de fornecer explicações e comprovações plausíveis para os fatos. No caso piracuruquense, é provável que a narrativa, primeiro transmitida oralmente, geração após geração, tenha sofrido alterações importantes com relação ao relato original, assumindo dimensões misteriosas e nela incorporados elementos sobrenaturais.

Não são conhecidos registros que, recuando à primeira metade do século XVIII, possam nos fornecer detalhes acerca do projeto e do processo de edificação da “[…] mais suntuosa, mais bela, mais bem construída e mais estética [igreja] do Piauí”[32], com paredes levantadas em “[…] pedra de cantaria, assaz magnífic[a], o que fez de despesa quase duzentos mil cruzados, porém está sem uso e a descoberto”[33]. Embora sucintas, as citações acima referidas atestam a magnitude da obra, dão conta do valor financeiro envolvido para fazer face à sua edificação e confirmam que ela permanece sem parte do teto, pelo menos, por cerca de trinta anos. Na ausência da documentação comprobatória – projetos, memoriais descritivos, relatórios, correspondências etc. – que possam explicitar e justificar os reais motivos que levam seus benfeitores à realização de um empreendimento de tal monta naquela então inóspita paragem de meu Deus, ainda muito habitada por silvícolas acuados e por intrépidos vaqueiros que seguem a movimentação natural de suas boiadas em busca de melhores pastos, resta, tão somente, o exercício da imaginação nas representações de fé, ou, bem mais tarde, à formulação de hipóteses, admissíveis, porém não conclusivas. E é no campo hipotético que Machado Bitencourt nos propõe que o templo, de fato, tenha sido construído pelos Dantas Correia, sob o patrocínio e orientação, no entanto, da Companhia de Jesus. Com a expulsão da Ordem nos domínios da Coroa Portuguesa, em 1759, toda a documentação existente é confiscada – ou mesmo extraviada – por parte das autoridades do governo. De dado concreto, contudo, há o registro histórico da estada, na povoação de Piracuruca, em 16.08.1762, de uma comissão composta pelo governador da Capitania do Piauí, João Pereira Caldas, pelo conselheiro da Casa de Suplicação de Portugal, Francisco Marcellino Gouveia, e pelo ouvidor Luiz José Duarte Freire. Naquela oportunidade, realiza-se a solenidade de elevação da povoação de Parnaíba à categoria de Vila, no interior da igreja. Assim é que a suntuosa edificação piracuruquense apoia-se, ainda hoje, apenas na curiosa, porém precária, lenda de fé votiva dos Dantas Correia ou, ainda, em hipóteses, a exemplo da formulada por Bitencourt, que aduz:

As averiguações mandadas proceder incluíram a Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Piracuruca, visitada em 16 de Agosto de 1762 pelo governador João Pereira Caldas pelo conselheiro da Casa de Suplicação (de Portugal) Francisco Marcellino de Gouveia e pelo ouvidor Luiz José Duarte Freire. […] Essa visitação à freguesia de Piracuruca reforça a hipótese de que os Irmãos Dantas tinham vínculos com os jesuítas e que a Igreja de N. S. do Carmo foi incluída na lista dos estabelecimentos construídos segundo projeto elaborado pela Companhia de Jesus. Infelizmente não há nenhum indício que sirva para repor a memória daqueles acontecimentos; se haviam documentos, é fácil supor que foram confiscados pelas autoridades visitantes[34].

Sobre os Dantas Correia, pretensos protagonistas na tradição oral e em suas reverberações como os benfeitores do templo, as pesquisas realizadas e levadas a público no campo da genealogia nos informam que são naturais da então Villa de Barcellos, bispado de Braga, região do Minho, em Portugal. São filhos do casal Antônio de Antas e Maria da Costa Aguiar. Pelo costado paterno, são seus avós Belchior de Antas e Catarina de São Thiago.

Consta que José Dantas Correia, nascido em 1684, contrai núpcias com Izabel Rocha Meireles, filha de Manoel Vaz Varejão. Desse consórcio, nascem: Antônio Dantas Correia, José Dantas Correia, Frutuoso Dantas Correia, Caetano Dantas Correia e Gregório José Dantas Correia[35]. Em alguns escritos, José Dantas surge estabelecido na Capitania de Pernambuco, fundando, nas proximidades de Olinda, o Engenho Fragoso. No entanto, verifica-se, em outros registros, que o referido engenho aparece como sendo de propriedade de seu filho mais velho, Antônio Dantas Correia[36]. Na sua trajetória de sesmeiro e fazendeiro, o capitão José Dantas requere, em 20.03.1719, a concessão de data de sesmaria no sertão de Piranhas, na Paraíba. Em 16.01.1721, outra data de sesmaria é também por ele requerida, desta feita no sertão de Espinharas[37]. Em 15.05.1745, juntamente com o filho mais novo, o também capitão Gregório José Dantas Correia, recebe carta de doação de data de sesmaria localizada entre os rios Paraíba e Paraibinha, buscando o sertão dos Cariris, concedida pelo então governador João Lobo de Lacerda[38].

À luz das informações aqui elencadas, admite-se inferir que José Dantas Correia – criador de gado na Paraíba e, possivelmente, produtor de cana em Pernambuco -, talvez, não permaneça junto ao seu irmão Manoel, em Piracuruca, durante a maior parte do tempo em que o templo é erigido. Essa provável ausência justifica as ponderações efetuadas por Bitencourt, quando assim assevera:

Recorre-se ao falecimento de Manoel Dantas e à inexplicável ausência do seu irmão José Dantas como motivos para a suspensão dos últimos trabalhos de construção da Igreja. Morto aquele que foi o contratante principal (e talvez o mestre de obras) e ausente seu irmão, nada restou senão o abandono do canteiro de obras pelos técnicos e (ou) trabalhadores convocados. Ficaram no Sítio da Piracuruca os naturais do local, índios aculturados, posseiros e vaqueiros das inúmeras fazendas já assentadas na região[39].

Manoel Dantas Correia, que, supõe-se, seja o principal benfeitor da igreja, ainda conforme a tradição oral, vem a óbito no ano de 1743 e o seu corpo é sepultado junto ao altar-mor. Os serviços no templo são suspensos, ficando concluída a elevação das paredes. Certamente, a data em referência, grafada em algarismos romanos talhados na placa de pedra que compõe o frontispício, comprova a importância da etapa, no processo de construção.

Em solene testamento, Manoel Dantas lega todos os seus bens materiais à Virgem do Monte do Carmo, padroeira da então freguesia de Piracuruca. O documento histórico é assentado em cartório somente mais de cinquenta anos depois, em 04.01.1800. Nele, lê-se:

Certifico que revendo o livro de Registros dos Testamentos dos que falecem nesta Freguezia e Termo nelle achei Registrado o Solene Testamento com que faleceo na Matriz de Piracuruca Manoel Dantas Correia e no mesmo a folha desaseis verso a Verba de que o requerimento retro faz mensão a qual he da forma maneira e theor seguinte. “Declaro que pagas as minhas dívidas e satisfeitos os meus legados, declaro nomeio e instituo por minha universal herdeira de todo o restante dos meus bens assim moventes como submoventes, a Virgem Nossa Senhora do Monte do Carmo desta freguesia de Piracuruca, Capitania do Piauhy deste Bispado do Maranhão com obrigações de se dizerem todos os annos na sua Matriz duas Capellas de Missas por minha alma, e no anno para esta obrigação terá seu princípio no dia da minha morte, e quero que para se dizerem prefira sempre o Parocho da Freguezia. Declaro que as duas ditas minhas fazendas Viado e Boqueirão se conservem sempre com o meu ferro e signal e que tenhão o Títullo de Fazendas de Nossa Senhora do Monte do Carmo, a minha universal herdeira como dito tenho e he minha vontade.” E nada mais se continha em ditas Verbas Testamentárias que bem e fielmente aqui certifiquei do próprio Testamento que se acha registrado no hum Livro de vistos (sic.) que se acha em meu puder e cartório, ao qual me reporto em todo e por todo e vai certificado na verdade sem cousa que duvida faça, pois com as mesmas verbas esta certidão conferi consertei e assinei nesta Villa de Sam João da Parnaíba aos quatro dias do mez de Janeiro do anno do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de mil e oitocentos annos: Em fé da verdade. – O Escrivão Domingos de Freitas Caldas. – D. 243 B. 240 Cons. 80[40].

Às fazendas de gado “Viado” e “Boqueirão”, legadas por Manoel à Virgem do Carmo de Piracuruca, junta-se o imóvel “Macambira”, este, no entanto, doado por um terceiro irmão, Heitor Dantas Correia, conforme atestam os excertos a seguir:

[…]
Verifica-se dos termos da doação que Manoel Dantas doou duas fazendas – Viado e Boqueirão, e Heitor (não José, […]) Correia uma fasenda – Macambira, com datas das quaes se formaram os retiros e depois as fasendas. Dahi vem o número de 9 fasendas, […].
[…]
Que não só a excepção, […], mas além do testamento de Manoel Dantas, […], e não o de Heitor, por se ter destruído na guerra da Balaiada […], temos uma cópia de justificação feita em juízo […][41]

Assim é que Heitor Dantas Correia, personalidade até então não mencionada na escrita da história piracuruquense, emerge das sombras do esquecimento. As ainda parcas informações sobre Heitor e sua doação são oferecidas pela própria Igreja Católica, como justificação de posse, quando dos embates travados com um grupo de cidadãos locais, durante uma famosa questão jurídica pelos direitos de administrar o patrimônio da Santa[42]. Surge, com isso, a necessidade de novas pesquisas, com vistas a descobrir e depreender a importância que o terceiro irmão tem, muito possivelmente, no processo de construção do templo.

Por volta de 1750, conforme menciona Melo[43], a igreja de Nossa Senhora do Carmo, sede da freguesia de Piracuruca, encontra-se rebocada, já com as suas torres, mas ainda sem os corruchéus. Àquela época, o templo é dotado, além da nave principal, de três capelas e cinco altares, elegantes e artisticamente dispostos, que se distinguem pela escultura, pinturas e obras de talha. Na sua entrada, elegantes colunas de pedras lavradas formam um belo peristilo. O conjunto do acervo do templo é composto, ainda, de pia batismal, púlpito e lavatório em mármore. Forrada com obra de talha, parte do teto existente e o altar-mor são dourados. Compõem o seu enxoval diversos outros objetos valiosos e de grande importância artística, destacando-se as lâmpadas de prata e muitas outras alfaias e paramentos, merecedores de registro[44].

Entre os já distantes anos de meados do século XVIII e os dias atuais, o templo mariano passa por diversos serviços de recuperação, manutenção e modificações estéticas internas. Consta que, em 1801, o teto do prédio desaba e obriga seus administradores a vender uma das fazendas do patrimônio da Santa para realizar a necessária recuperação[45]. Àquela ocasião, são substituídas as linhas das “tesouras” por tirantes de ferro. No ano de 1912, parte do altar-mor e o forro da capela também caem por terra. No período compreendido entre 1920 e 1935, diversos são os serviços realizados, incluindo-se alterações no revestimento interior, mudança do piso e inclusão, no panteão, de novos altares e imagens. Mais recentemente, em meados de 2000, em face do desgaste natural, o teto da Igreja volta a necessitar de substituição. Desta feita, em ação providencial que envolve a o Ministério da Cultura e a Secretaria Municipal de Cultura, a obra é realizada a contento.

A confiança na intercessão piedosa da Virgem do Monte do Carmo para minorar o sofrimento de seus diletos filhos, inaugurada a partir da ação de sertanistas, fazendeiros e religiosos por terras do norte do Piauí – a exemplo de João Velho do Vale, do padre João da Costa Pereira e dos irmãos Dantas Correia, dentre outros – chega ao século XXI, representada nos novenários, quermesses e outras ações paroquiais. Em veneração ao orago de Piracuruca, os festejos acontecem anualmente, entre os dias 06 e 16 de julho, período em que para ali afluem milhares de fiéis, entre membros da sociedade local, filhos da terra e visitantes de outros municípios e Estados vizinhos. Por aqueles dias, sob forte emoção, a multidão devota canta, em coro, o hino da Padroeira, em cuja letra, de autoria consignada ao monsenhor Benedicto[46], encerra-se o refrão: “Oh! glória de nossa terra, do Carmelo nívea flor; dos bons piracuruquenses, tu terás sempre o louvor!”. Utilizando-se o evento sob comento como exemplo, verifica-se a existência de um enorme potencial para o desenvolvimento do turismo histórico e religioso em Piracuruca e região, ainda praticamente inexplorado, que aguarda os necessários incentivo e investimento, por parte dos governos e do empresariado do setor.

O templo secular, apesar das diversas situações e inúmeros problemas enfrentados por seus administradores ao longo de quase trezentos anos, hoje tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), permanece relativamente bem preservado, dando mostras de que prosseguirá oferecendo à atual e às futuras gerações de cristãos católicos o seu vigoroso legado de fé. Entretanto, aquela construção pétrea, fincada na adusta gleba piracuruquense, símbolo inconteste da ousadia e determinação de bravos homens que irrompem os inóspitos sertões, seguindo as veredas aberas pela pata do boi, prossegue desafiando os esforços de estudiosos e pesquisadores em história setecentista do Piauí.

Fontes consultadas:

1 – Artigo revisado, acrescido e atualizado. Publicado, em seu texto original, na revista PiauíTUR, edição nº 01, ano I, julho/2009, páginas 16-19, editada pela Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH), seção do Piauí.
2 – Francisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923), funcionário público e historiador pernambucano. Bacharel em Direito. Publicou, dentre outras obras, a “Cronologia Histórica do Estado do Piauí”.
3 – João Capistrano Honório de Abreu (1853-1927), historiador cearense que ficou conhecido pelo rigor de suas pesquisas. Publicou, dentre outras obras, “Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil”.
4 – Cláudio Melo (1932-?), sacerdote, professor e historiador piauiense. Bacharel em Teologia e Filosofia. Doutor em sociologia. Publicou, dentre outros títulos, “Fé e Civilização”.
5 – João Velho do Valle, considerado um dos principais sertanistas do Nordeste brasileiro.
6 – ABREU, J. Capistrano de. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Sociedade Capistrano de Abreu, 1966; p. 123.
7 – Em língua tupi-guarani, peixe que ronca (pirá=peixe; kuruk=roncador), fazendo alusão a diversas espécies de mandis (pimelodus maculatus) que proliferavam, em larga escala, nos lajeiros do rio.
8 – Os Tremembés compunham um grupo étnico tapuia que, no século XVI, se estendia do litoral do Pará ao Rio Grande no Norte. No Piauí, viviam no delta do rio Parnaíba e proximidades do Baixo Parnaíba.
9 – Os Alongases viviam na região do vale do rio Longá e seus afluentes.
10 – Os Tocarijus (ou Cararujus) faziam parte do grupo Tapuia, vivendo na atual região fronteiriça do norte dos Estados do Piauí e Ceará. Possuíam características culturais bastante peculiares, sendo considerados pelos primeiros exploradores “criaturas brutais, satânicas, alerves e ímpias” em face de suas práticas antropófagas.
11 – Tabajaras são a denominação dada e grupos silvícolas que se fixaram na serra da Ibiapaba, região limítrofe entre os atuais Estados do Piauí e Ceará.
12 – João da Costa Pereira, sacerdote, é considerado um dos primeiros exploradores a se instalar em terras do norte do atual Estado do Piauí.
13 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 09, documento nº 205; folha 139v; de 20.07.1739.
14 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 03, documento nº 186; folha ; de 01.08.1727.
15 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 03, documento nº 189; folha ; de 04.08.1727.
16 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 04, documento nº 104; folha ; de 24.05.1728.
17 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 05, documento nº 208; folha ; de 12.03.1730.
18 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 05, documento nº 211; folha ; de 12.03.1730.
19 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 05, documento nº 216; folha ; de 19.03.1730.
20 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 06, documento nº 024; folha ; de 13.04.1731.
21 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 09, documento nº 108; folha ; de 16.07.1738.
22 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 10, documento nº 101; folha ; de 28.07.1741.
23 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 10, documento nº 114; folha ; de 31.07.1741.
24 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 10, documento nº 120; folha ; de 05.08.1741.
25 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 10, documento nº 092; folha ; de 18.07.1741.
26 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 12, documento nº 057; folha ; de 13.09.1743.
27 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 12, documento nº 122; folha ; de 14.09.1744.
28 – PARÁ. Arquivo Público do Pará. Registro de Concessões de Datas de Sesmarias. Livro nº 12, documento nº 031; folha ; de 12.08.1743.
29 – BARRETO, Jair José Guimarães (editor). Paróquia de Parnaíba: 50 Anos Peregrinando Sob a Proteção da Virgem da Graça; p. 24.
30 – MELO, Cláudio. Fé e Civilização. Teresina: Edição do Autor, 1991; p. 63.
31 – BRITO, Anísio. O Piauhy no Centenário de sua Independência. Therezina: Papelaria Piauhyense, 1923; p. 141-143.
32 – BRITO, Anísio. O Piauhy no Centenário de sua Independência. Therezina: Papelaria Piauhyense, 1923; p. 143.
33 – DURÃO, Antônio José Morais. Descrição da Capitania do Piauí (1772). In: MOTT, Luiz. Piauí Colonial: população, economia e sociedade; p. 40-41.
34 – BITENCOURT, Jureni Machado. Apontamentos históricos da Piracuruca. Teresina: COMEPI, 1989; p. 63.
35 – DANTAS, José Adelino. O Coronel de Milícias Caetano Dantas Correia. Natal: Edição do Autor, 1977; p. 76-78.
36 – FONSECA, Borges da. Nobilarquia Pernambucana. p. 79.
37 – DANTAS, José Adelino. O Coronel de Milícias Caetano Dantas Correia. Natal: Edição do Autor, 1977; p. 71.
38 – TAVARES, João de Lyra. Apontamentos para a História Territorial da Parahyba. Mossoró: Escola Superior de Agricultura de Mossoró, 1989; p. 195.
39 – BITENCOURT, Jureni Machado. Apontamentos históricos da Piracuruca. Teresina: COMEPI, 1989; p. 71.
40 – CALDAS, Domingos de Freitas. Testamento de Manoel Dantas Correia. Livro de Registro de Testamentos do Cartório da Villa de Parnaíba nº 01, em 04.01.1800. In: Piracuruca. O Apóstolo, Anno III, nº 107. Therezina, 27.06.1909.
41 – Piracuruca. O Apóstolo. Ano III; nº 107; Therezina, 27.06.1909; p. 01.
42 – A “Questão da Santa”, como ficou conhecida, tornou-se um dos processos jurídicos mais famosos do Piauí em todos os tempos. Estendendo-se por toda a primeira metade do século XX, colocou em lados opostos a Igreja Católica e um grupo de cidadãos piracuruquenses, representados pela Sociedade Fraternidade Beneficente, disputando o direito de administrar os bens legados pelos irmãos Dantas Correia a Nossa Senhora do Monte do Carmo de Piracuruca.
43 – Claudio Melo, sacerdote, professor e historiador piauiense.
44 – MELO, Cláudio. Fé e Civilização. Teresina: Edição do Autor, [s/d.]; p. 61-62.
45 – BRITO, Maria do Carmo Fortes de. Remexendo o Baú. Piripiri: Gráfica Ideal, 2003.
46 – Benedicto Cantuária de Almeida e Sousa (1889-1979), sacerdote. Pároco da paróquia de Nossa Senhora do Monte do Carmo de Piracuruca entre 20.04.1932 e 27.08.1972.