O Francia do Piauí

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Um encontro histórico interessantíssimo ocorreu na antiga capital do Piauí, Oeiras, na manhã do dia 12 de março de 1839. Algo que quebrou a monotonia da pequena e sonolenta cidade, a velha e conservadora urbe. Um fleumático médico-cirurgião e naturalista britânico (escocês), em pesquisas botânicas pelo Brasil, George Gardner (1812-1849), que percorreu o Brasil de 1836 a 1841, reuniu-se com o poderosíssimo presidente da província do Piauí, Manuel de Sousa Martins, o visconde de Parnaíba.

O visconde de Parnaíba, Manuel de Sousa Martins (1767-1856) era filho do português de igual nome e de Dona Ana Rodrigues de Santana. Nasceu na fazenda Serra Vermelha, em terras da antiga Oeiras, e faleceu em avançada idade.

“Né” de Sousa (seu apelido familiar) tornou-se um hábil vaqueiro e negociante esperto e ativo. Assentou praça como soldado raso, passou a furriel (posto militar entre cabo e sargento) da Quinta Companhia de Regimento de Cavalaria de Milícias e tornou-se alferes em 1804. Rapidamente ascendeu aos maiores postos; em 1812 era coronel agregado; promovido a brigadeiro, reformou-se a pedido, sem soldo, em 1820.

Vejamos o que diz o historiador piauiense Esmaragdo de Freitas (1887- 1946):

“As honrarias reais ou imperiais, com que foi distinguido, começaram com o Hábito de Cristo (1811). Em seguida foi armado cavaleiro dessa mesma ordem (de que seria comendador em 1830), na matriz de N. S. da Vitória, pelo governador Baltazar de Sousa Botelho de Vasconcelos (1814). Oficial da Imperial Ordem do Cruzeiro, em 1823, logo no ano seguinte era elevado à dignatário e feito fidalgo cavaleiro da Casa Imperial. Seu título de Barão data de 3 de junho de 1825; o de Visconde – com honras de grandeza – de 26 de julho de 1841.”

Como se percebe, o histórico hierárquico de Né de Sousa era impressionante. Ocupou ainda por muitos anos o cargo de tesoureiro geral da Junta Real da Fazenda. Participou, como vice-presidente, da junta administrativa que sucedeu a Elias José de Carvalho em 1831.

No dia 24 de janeiro de 1823, apoiado pelo irmão e tenente-coronel Joaquim de Sousa Martins, o visconde proclamou a adesão do Piauí à Independência do Brasil.

Governou a Província do Piauí por longos 20 anos, salvo alguns curtos períodos, de 1823 a 1843. 

Ainda jovem, casou-se com sua prima Josefa Maria dos Santos. Por viuvez, contraiu segundas núpcias aos setenta e sete anos com a viúva Maria Benedita Dantas. De seu primeiro casamento deixou três filhos. Do segundo, nenhum. Ignoram-se quantas dezenas de filhos bastardos gerou. Deu, porém, boa educação para muitos destes, alguns dos quais alcançaram importantes cargos públicos.

Faleceu em 20 de fevereiro de 1856, sendo sepultado junto ao altar-mor da igreja-matriz de Oeiras.

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DESENHO ANTIGO DO VISCONDE

No dia 12 de março de 1839 chega Gardner a Oeiras, onde, é claro, logo procurou munido de fartas recomendações, a maior autoridade da cidade e da Província, Manuel de Sousa Martins, o Né de Sousa.  

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MAPA DE PARTE DO BRASIL PUBLICADO POR GARDNER SOBRE AS PROVÍNCIAS QUE PERCORREU (REPRODUÇÃO).

Eis sua descrição, onde se refere ao governante como o Francia do Piauí, uma alusão ao grande caudilho e herói da independência paraguaia, José Gaspar Rodrigues Francia (1776-1840) .

 “Trazendo comigo várias cartas de recomendação para o barão de Parnaíba, presidente da Província, ao entrar na cidade de Oeiras na manhã de 12 de março de 1839, inquiri da sua residência; um soldado me indicou. O palácio, como é chamado, está situado na parte mais elevada da cidade, tem apenas um pavimento e é de aparência muito ordinária. Chegando à porta encontrei-a guardada por uma sentinela, um dos seres de aspecto mais ignóbil que se pode imaginar.

“Era um jovem mulato trajando a farda das tropas de linha, que parecia não lhe ter saído das costas havia bem seis anos; a sua barretina de pano era velha e ensebada; a blusa azul compunha-se metade de remendos e metade de buracos e deixava a descoberto o peito nu demonstrando a ausência de camisa; as calças eram pouco melhores do que a blusa, e os pés, sem meias, estavam metidos num par de velhas botas, acalcanhadas e estouradas nas pontas. Não fora o mosquete e a sua posição ereta, tê-lo-ia tomado por um mendigo.

“Havia em frente ao edifício uma calçada de poucos pés de largura, sobre a qual o meu cavalo, ao esbarrar, assentou as mãos, e antes que eu pudesse falar, a sentinela saltou para frente, agarrou a brida e fez o animal voltar para a rua.

“Desmontei-me então e dirigi-me para a porta, porém mal tinha posto os pés na calçada, quando fui tratado da mesma maneira que o meu cavalo, e informado de que ninguém podia entrar no palácio de esporas. Tirei-as no mesmo instante e, tendo perguntado se ainda era preciso alguma coisa, permitiu-me entrar.

“Ao chegar na antecâmara, veio ao meu encontro um sargento que indagou se eu desejava falar com S. Exa., e dizendo-lhe que eu trazia cartas para o mesmo, disse-me ser seu dever entregá-las.

“Depois de esperar cerca dum quarto de hora na antecâmara, fui conduzido a uma espaçosa sala contendo duas pequenas mesas, um sofá e algumas cadeiras. Achava-me ali havia menos de cinco minutos, quando S. Exa. Apareceu trazendo em punho as minhas cartas. Pediu-me que o desculpasse enquanto as lia e que não reparasse no traje caseiro que usava em consequência do grande calor do dia.

“O seu vestuário era certamente muito leve, mas era usado em geral em casa pelos habitantes da Província; consistia numa tênue camisa de algodão branco caindo solta sobre um par de ceroulas do mesmo estofo, que desciam apenas um pouco abaixo dos joelhos; as suas pernas e pés estavam nus, os últimos metidos num par de chinelos; em volta do pescoço trazia diversos rosários com crucifixos e outros penduricalhos de ouro.

“Enquanto ele percorria as minhas cartas, não pude coibir-me de escrutar a aparência de um indivíduo cujo nome é mais afamado do que qualquer outro no Norte do Brasil, e cujo governo despótico Província de que é presidente, ganhou-lhe a alcunha de Francia do Piauí.

“Ele era baixo de estatura e vigorosamente construído, apesar de não ser corpulento; o seu olhar traía consideravelmente mais atividade, tanto de corpo como de espírito, do que em geral se encontra entre as pessoas de sua idade no Brasil, porquanto andava então próximo dos setenta anos; a sua cabeça era de tamanho notável e, de acordo com os princípios de frenologia, assaz bem equilibrada anterior e posteriormente, mas deficiente na região dos sentimentos morais, e tinha considerável largura entre as orelhas.

“No decurso da conversação a sua fisionomia tinha uma expressão desagradavelmente sinistra, não obstante procurasse em geral disfarçá-la, com um meio-sorriso. Terminada a leitura das cartas, todas as quais percorreu atentamente, entramos em conversa com relação à minha visita à Província, porém não consegui fazê-lo compreender que minhas coleções botânicas tivessem outro destino do que o de serem convertidas em medicamentos e matérias de tinturaria.

“Que os produtos da natureza fossem estudados com outro qualquer intuito, além do da sua mera utilidade para o homem, não podia formar a menor ideia. Assim que soube da minha intenção de demorar-me por algum tempo na cidade, mandou uma pessoa procurar uma casa vazia para mim, e, como esta não estivesse mobiliada, teve a amabilidade de enviar-me duas cadeiras, uma mesa e uma grande jarra de barro para água.”

Segundo Esmaragdo de Freitas, Gardner permaneceu em Oeiras por mais de quatro meses, recolhendo vegetais, anotando costumes locais e exercitando a medicina clínica e a cirurgia. Nesse período teria sido objeto de curiosidade e de respeito por todas as classes da população oeirense, notadamente pelo mandatário. Diz ele:

“O barão, além de provê-lo de casa, móveis e utensílios, manda os cavalos do inglês à engorda numa das suas fazendas e retém o próprio inglês como frequente convidado à sua mesa, à cuja cabeceira senta o dono da casa.”

O próprio Gardner parece ter aos poucos mudado sua opinião sobre o Francia do Piauí. Passou a observar também o lado positivo do estadista e cidadão. Escreveu o médico britânico:

“É antes temido do que respeitado pelo grosso da população e, em casos de emergência, pode reunir dentre os seus amigos e dependentes mais de dois mil vigorosos defensores; tem sempre à mão quem esteja pronto a excetuar-lhe as ordens sem discuti-las. Pela severidade do seu governo tem suscitado muitos inimigos, particularmente pela decretação de algumas leis provinciais que, seja dito em seu favor, tendem sempre a beneficiar às classes necessitadas. Ente outras coisas, proibiu que a carne de vaca e a farinha – os dois principais artigos de alimentação – se vendam na cidade acima de certo preço prefixado, e que é bem módico; mas, por outro lado, tem sempre o cuidado de fazer com que o seu gado seja mandado para a Bahia e outros mercados distantes e mais remuneradores, e para isto dispõe de amplas facilidades. Ignorante de quase tudo possui, todavia grande atilamento e astúcia, qualidades altamente propícias à manutenção do despotismo com que tem regido a Província, dando-lhe, é certo, com este regime mais paz e sossego do que fruem as outras Províncias do Império. É de admirar que, apesar de seus numerosos inimigos, só houve até aqui um atentado para assassiná-lo, isto no ano anterior à minha chegada ali.”

O autor do atentado ao barão em 1838 foi Joaquim Seleiro, que com disparo de bacamarte feriu o oligarca levemente no ombro e na cabeça. Capturado após o fracasso de seu intento, o pistoleiro foi estrangulado na cadeia pouco depois. Segundo Esmaragdo de Freitas, o mandante da morte de Seleiro não foi Né de Sousa, mas seus inimigos, interessados em jogar a culpa no mandatário. 

 Fontes:

Freitas, Esmaragdo de. O visconde de Parnaíba. Ed. Jornal do Comércio, RJ,1947.

Gardner, George. Travels in the interior of Brazil: principally through the northern provinces, and the gold and diamond districts, during the years 1836-1841. London, Reeve Brothers, 1846.