A busca pelos vestígios da “Igreja Velha” da Piracuruca

Matéria originalmente veiculada
na edição 4 da Revista Ateneu, 2022.

A história da Igreja de Nossa Senhora do Carmo em Piracuruca se confunde com a própria história da cidade. É uma simbiose que transcende gerações. A Igreja é uma das mais antigas e belas da região e é comum na literatura a afirmação de que ela teria sido erguida entre 1718 e 1743, sendo considerada uma obra votiva.

Pois sim, ela teria sido fruto de uma promessa, construída com o patrocínio dos irmãos Dantas. A Matriz do Carmo possui um grande valor histórico e artístico e por isso, foi declarada Patrimônio Nacional em 1937 (1).

A Igreja da Piracuruca na pintura do artista austríaco Hans Nöbauer (N. 1893 – F. 1971), datada de 1928, faz parte da coleção do Museu Histórico Nacional.

Ao longo dos anos, diversos historiadores trataram sobre a construção do templo, destaque para o intelectual e imortal da Academia Piauiense de Letras – APL, o piracuruquense Anísio Brito (24/09/1886 – 17/04/1946). Anísio descreve o episódio em seu livro “O Piauhy no Centenário de Sua Independência” lançado em 1922, dizendo (2):

Dois portugueses – Manoel Dantas Correia e José Dantas Correia, em princípios do século XVIII, se internaram nos sertões piauienses, explorando o vasto território da então capitania ainda sem autonomia. Riquíssimos, os dois aventureiros, depois de muito andarem e sem que receassem perigos sem conta que lhes poderia sobrevir, caíram inesperadamente em mãos dos selvagens que o aprisionaram. Eram índios antropófagos, habitantes do litoral, e, logo os dois prisioneiros consideraram sobre a miserável sorte a que eram destinados, prisioneiros que estavam, daqueles bárbaros. Na emergência, desenhando-se-lhe na imaginação o momento lúgubre em que iriam servir de repasto, sem outro recurso para reaver a suspirada liberdade, volveram-se aos braços consoladores e, às vezes, infalíveis, da fé: fizeram um voto a N. S. do Carmo de lhe mandarem construir um majestoso templo, naquele local, onde se achavam prisioneiros, se a excelsa virgem lhe salvasse a vida. A virgem operou o milagre: recuperaram a liberdade os irmãos Dantas. E a construção do templo teve início… sendo a mais suntuosa, mais bela, mais bem construída e mais estética do Piauí.

No decorrer do tempo, o relato acima ganhou adendos mais espetaculares, quanto a isso, em (1), é dito:

… a construção do templo foi iniciada. Porém, a imagem da santa que existia no local desaparecia à noite, e era reencontrada na manhã seguinte sobre o tronco de uma carnaubeira. Após a repetição desse acontecimento por várias vezes, decidiram então erigir a igreja onde a imagem reaparecia, que é o local onde ela está edificada hoje.

Já outros historiadores, como Pe. Cláudio de Melo em seu livro Fé e Civilização (3), em linhas gerais, confirma e até repete o texto de Anísio Brito, mas não diz que os índios eram antropófagos, e ainda apresenta o seguinte complemento:

…Salvos logo se dispuseram a cumprir o prometido. Voltaram para Portugal e, segundo uma tradição, de lá trouxeram mestres de obras, peritos no talhar das pedras e marceneiros, que logo deram início à mais bela obra colonial do Piauí. Este fato marca, sem dúvida, a origem da cidade…

A tradição oral coloca outros detalhes marcantes ao episódio:

  • Diz que após feita a promessa, um dos irmãos se achou com os laços que o amarravam frouxos, daí ele conseguiu se desvencilhar e desamarrou o outro. Estando os dois libertos, conseguiram fugir.
  • No local onde de fato foi construída a igreja, a lenda diz que era uma lagoa, morada de uma baleia (ou talvez um grande peixe) e que este animal repousa embaixo do altar da igreja à espera de uma grande enchente do Rio Piracuruca.
  • O corpo de Manoel Dantas teria sido sepultado em 1743, próximo ao altar da igreja.
  • Sobre o primeiro local onde teria sido iniciada a construção, alguns afirmam ter encontrado os alicerces, outros afirmam ser um lugar encantado que some e reaparece.

Bom, é justamente sobre esse último tópico que irei me ater a partir de agora neste artigo. Trata-se de um mistério duradouro, mas que nunca foi devidamente estudado. O fato é que, como diz acima, o local tem um “encantamento”, ou seja, algumas pessoas dizem ter visto os antigos vestígios, ou conhecem alguém que viu, ou ainda ouviram falar que alguém sabe onde se localizam. No entanto, ninguém nunca informou o local. É algo que é alimentado pela oralidade como fazendo parte da história oficial, mas que não tem base concreta.

EXISTEM OS ALICERCES DA IGREJA VELHA?

Para tentar elucidar essa questão, visitei por pelo menos três vezes a região que é o epicentro da lenda. O lugar fica a cerca de 5,5 km a partir da BR 343, seguindo pela Avenida Coronel Pedro de Brito no sentido oeste, acompanhando o rio Piracuruca. É uma área de bonita paisagem e a menos de 300 metros da margem do rio Piracuruca. É cercada por morros, tendo inclusive um deles chamado de Morro da Igreja Velha. Alguns também a conhecem por região do Dimas.

Analisei a superfície através de imagem de satélite, em um raio de 1 km a partir do epicentro da lenda. Não percebi nenhum vestígio de construção!

Após a busca por vestígios materiais in loco e uma análise preliminar através de imagens de satélite, ambas sem sucesso, recorri a um dos moradores que mais conhece a região, Sr. Joaquim Ribeiro Magalhães Filho, nascido em 02 de outubro de 1954. Sr. Joaquim Filho, detentor de muitas memórias sobre a região, relatou que na década de 1960 havia no local uma rústica barraca, uma construção provisória que servia de apoio aos trabalhadores para bater palha e extrair o pó da carnaúba. Segundo ele:

…a verdade que eu sei de certeza é que nunca houve alicerce, essa é uma coisa que escuto desde os antigos da minha família, é uma informação que passa de uma geração a outra, ouvia o meu avô falar que o pai dele já dizia…

Ao lado do Sr. Joaquim, ao fundo, o morro da Igreja Velha.
Sr. Joaquim Ribeiro Magalhães Filho. Diz ele: “…andei por toda essa região trabalhando, botei a baixo tudo para fazer roça, nunca achei nenhuma pedra enfiada, é porque não existe!”.

Mas, surge outra questão, o que levou o imaginário popular a crer que ali existem alicerces da antiga igreja da Piracuruca? Sobre isso, o que o Sr. Joaquim afirma, coincide com a lenda – com os irmãos Dantas sendo capturados e amarrados pelos índios e a promessa que fizeram de construir a igreja. A diferença é que não chegaram a construir alicerces no local e sim apenas uma barraca de apoio (talvez um canteiro de obras). Relata ainda que:

…como a imagem da santa costumava sumir e aparecer onde a igreja é hoje, eles resolveram construir lá, sem terem iniciado a construção aqui!.

Presume-se que a disseminação da informação de que ali existem alicerces teve a sua origem ainda com os primeiros moradores de Piracuruca, que foram contemporâneos à real construção da Igreja de Nossa Senhora do Carmo. E, mesmo sem comprovação da existência de alicerces da Igreja Velha, essa informação foi sendo passada a frente o suficiente para o lugar ficar marcado como tal, inclusive tem uma chácara na região com o nome de Chácara Igreja Velha.

Portanto, baseado em todo o contexto pesquisado, conclui-se que os movimentos que ocorreram no lugar, com somente a provável idealização de construir a igreja (canteiro de obras), sustentaram e foram base para propagação da tese da Igreja Velha. Isso foi ganhando força ao longo de quase 300 anos, abastecendo o enredo da lenda da santa como um todo, e se retroalimentando da mesma. Na minha opinião, se existisse realmente algum indício de construção, por menor que fosse, os moradores mais antigos já haviam colocado um cruzeiro, ou feito uma capela no local.

Em tempo: Sobre as pedras que foram usadas para a construção da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, Sr. Joaquim Filho diz: “…aquelas pedras daquela igreja foram tiradas da beira do rio, quebradas pelos escravos, e levadas em carro de boi, naquele tempo era tempo de cativeiro“. Abaixo, o local indicado por Sr. Joaquim, onde foram extraídos os blocos de pedra.

Margem do Rio Piracuruca, ao lado da Barragem Central, local onde, segundo Sr. Joaquim, teriam sido extraídos os blocos de pedra usados na construção da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo da Piracuruca. Foto: F Gerson Meneses.

Mas, ainda resta uma questão: o que de fato levou os construtores da Igreja atual a mudarem de ideia quanto ao local de sua construção? Foi realmente a aparição da santa no local onde a Igreja se encontra hoje? Ou a mudança teria sido motivada pelo que me relatou o Sr. Joaquim Filho? quando ele diz sobre a região da Igreja Velha: “aqui é uma região que inunda quando o inverno é bom“!!!.

De fato, nas cheias do Rio Piracuruca, boa parte da região da Igreja Velha fica alagada, portanto, é provável ser esse o real motivo da mudança do local da construção da Igreja da Piracuruca.

Referências bibliográficas:

  • 1 – MENESES, F Gerson. Testemunha da História. Revista Ateneu nº 1: Grárica do Povo, 2003;
  • 2 – BRITO, Anísio. O Piauhy no Centenário de sua Independência. Therezina: Papelaria Piauhyense, 1923;
  • 3 – MELO, Cláudio. Fé e Civilização. Teresina: Edição do Autor, 1991.