A índia Intã, de pé, na beira do mar na praia da Pedra do Sal, encanta as ondas que em desmaios vem aos seus pés. Dentro de um cenário único no Delta do Rio Parnaíba, um arquipélago fúlvio – oceânico com mais de 80 ilhas e ilhotas entre rios e igarapés, a Pedra do Sal, é um lugar único, formado na foz do rio Parnaíba e o Oceano Atlântico na divisa do Piauí com o Maranhão.
A Pedra do Sal é açoitada por ventos que levantam pequenas tempestades de areia alva e brilhante, um paraíso de rara beleza onde uma enorme formação rochosa divide a praia dando origem a um fenômeno especial que o poeta registrou em seus brancos versos, “Águas mansas, águas bravias, Oh! Pedras do Sal de Frias… refúgio dos amantes…”.
Ao lado de Intã, a misteriosa pedra Gigante cravada de sal. Seus longos e negros cabelos em reboliço cobriam um belo rosto tostado do sol daquela quente manhã dos idos de 1750. Relembra sua avó e as estórias que costumava contar das bravuras do índio Mandú Ladino, criado e educado por padres jesuítas e que depois se revoltou com as atrocidades praticadas pelos homens brancos e passou a comandar milhares de guerreiros de várias tribos.
Lembranças de sangrentas batalhas contra os brancos da Casa Grande e que culminaram com a morte do cacique Mandú, por afogamento, após ter sido baleado ao tentar atravessar o rio Igaraçu, próximo à Vila de São João da Parnaíba. Janay tinha o costume de ninar os curumins contando as bravuras dos guerreiros Tremembés.
Intã passava a mão pelo corpo suado, que agora tinha curvas bem definidas. Aquela barriguinha de menina e as pernas finas haviam se modificado dando destaque para um par de volumosos seios da cor de ameixas do mato, braços arredondados e longas e torneadas pernas. Embora na sua inocência silvícola, não compreendesse sua natureza feminina, tinha a sua faceirice de mulher. De vez em quando a menina moça fazia longas caminhadas. Hora sobre as dunas hora à beira do mar, espantando os pássaros e brincado com as Maria Farinhas, pequenos siris de cor amarela se escondiam na alva areia.
Não muito distante dali de onde estava, duas naus cruzavam fogos. Eram os piratas que haviam abordado uma pequena caravela. Depois de longa batalha a caravela vai a pique. Os piratas adentram a baía das Canárias em busca de um lugar seguro para avaliarem os resultados do último assalto.
Na beira do mar todas as manhãs Itã repetia seu ritual, o de encantar as ondas olhando os voos atrapalhados das gaivotas, os siris azuis correndo na grossa areia e os carcarás comendo búzios e restos de peixes. Intã parecia esperar do mar algum presente. Tinha uma fascinação pelo horizonte imenso do mar aberto. Queria saber o que havia além daquela linha azul, onde a água parece tocar o céu. Arauté se preocupava com sua filha que não se comportava como as outras meninas da aldeia, que passavam horas tomando banho nas lagoas de água doce. Nadando e pescando pequenas piabas da cor de prata. Os Tremembés adoravam nadar e pescar.
Tinham o costume de tomar vários banhos ao dia. A tribo de Intã conhecia bem a língua dos brancos, graças aos ensinamentos passados à tribo pelo seu bisavô Mandu Ladino, índio Arani e que ficou órfão de pai e mãe aos 12 anos de idade, tendo sido criado e educado por padres jesuítas da Ordem dos Capuchinhos, no Cariri do Boqueirão, próximo a Recife. Depois se rebelou contra os brancos e se tornou a maior liderança indígena dessa grande região.
Era final de tarde, Intã contemplava o belo por – do- sol e se encantava com aquele extraordinário fenômeno. Era o mais belo pôr-do-sol que assistira em sua vida. Ela caminha em direção ao pontal, onde a praia da Pedra do Sal termina no rio Parnaíba, bem próximo a sua foz.
Itã avista de longe, sendo empurrada pelas ondas, alguma coisa. Por alguns instantes pensou se tratar de um tubarão, um filhote de uma baleia encalhado ou uma tartaruga gigante vindo botar seus ovos na praia. A tarde se findava, o sol já se escondia no mar. Intã, curiosa, corre e se aproxima. Começa a perceber que se tratava do corpo de uma pessoa agarrado a pedaços de madeira que fracamente se debatia contra a força das ondas.
Movida por um inexplicável impulso cai na água e com fortes braçadas se aproxima, ainda que um pouco assustada, mas com vontade de ajudar aquele infeliz. Observa que o homem estava completamente nu. Suas roupas haviam sido arrastadas pela força das águas. Era um homem grande e forte de cor branca, cabelos longos e loiros, com firme musculatura, uma bela formosura, algo nunca visto por aquela jovem índia.
Seus olhos se cruzam. Íntã estende a mão. O homem com um esforço que parecia o último, agarra na mão da índia e larga os pedaços de navios que lhe ajudaram a chegar próximo da praia. Intã, com um esforço muito grande conduz aquele homem até a praia. Desidratado, o náufrago pede água. A índia corre até o rio e traz um pouco de água, coloca a cabeça dele sobre o seu colo e lentamente molha os seus lábios com a fria e doce água do rio Parnaíba.
O guerreiro branco logo se recupera e afasta-se com um impulso e tenta correr pela praia, tropeçando em um pequeno barranco de areia. Intã, vendo o desespero daquele homem gigante, sorri. Ele se levanta e se aproxima olhando firme dentro dos seus olhos. Depois gira o olhar para todos os lados e vê que não havia outros índios, apenas aquela bela e frágil mulher. Intã indaga ao estranho.
– Quem é você e de onde vem?
– De muito além do mar! Minha caravela foi afundado pelos piratas!
Íntã dominava muito bem a língua dos bancos, mas aquele era um pouco diferente. Mas com dificuldades entendeu o suficiente para saber que aquele homem precisava de sua ajuda.
– Guerreiro Branco, sua vida nestas terras corre perigo. Meu povo caça e mata brancos por vingança. Os brancos tocam fogo nas aldeias, raptam mulheres, matam velhos e crianças.
– Devo-lhe minha vida. Minha alma agora está presa à sua.
– Vamos andar pelo caminho sobre as dunas até as matas. Temos que seguir em busca de um lugar seguro para você ficar. Ali existe uma velha cabana. Ninguém vai lá!
Após longa caminhada, a noite imperava. Uma escuridão sem lua, apenas milhões de estrelas, em um céu de prata. Os dois chegam à rústica cabana, que já estava caindo aos pedaços, restando apenas uma banda de uma coberta feita de palhas de carnaúba.
Fria noite de ventos açoitantes de agosto. Em meio ao carnaubal, um verdadeiro moinho de ventos soprava as palhas. Cansado, o guerreiro encosta sua cabeça em um fardo de palhas que estavam amarradas. Em um canto da cabana ele cai em um mais profundo sono. Íntã sabe que tem que voltar para casa e segue sozinha. Pois naquelas horas os índios já estavam à sua procura e sua mãe desesperada, pedindo a ajuda de Tupã.
Na manhã seguinte Intã acordara antes do sol nascer. Prepara um uru, enche de frutas. Pega uma cabaça com água e sai. Antes fala bem baixinho no ouvido de sua mãe, que iria assistir ao nascer do sol na praia. Nas pontas dos pés, se afasta da aldeia e depois segue em rápida marcha até a cabana que fica um pouco distante dali. Tinha consciência do perigo que aquele homem corria, caso fosse encontrado por alguém da sua tribo. Ao chegar à cabana não mais encontrou o seu hospede. Saiu gritando. Mas como chamá-lo, pois nem sabia seu nome?
– Ará, Ará, Ará… UHU! Ará!
Pensou. Ará seria um bom nome para aquele guerreiro branco.
Debaixo de um enorme pé de juá, distante umas 30 braças dali – rindo, o homem se aproxima vestido de uma velha calça que havia encontrado junto ao pé de juá. Embora tenha ficado um pouco curta, era melhor do que ficar nu.
Intã, ao vê-lo sentiu uma forte sensação. Algo que não costumava sentir. Uma sensação muito forte. Ará, homem experiente da vida na Espanha, logo percebeu que a jovem sentia atração por ele. Aproxima-se e tenta tocá-la, ao que ela rapidamente pula para trás e saca seu arco e fecha. Com uma mira certeira atira ferindo de raspão o seu rosto.
Ará, num pulo, digno de um jaguar africano, agarra a moça e lhe toma o arco e retira de suas costas as flechas. Mesmo sagrando um pouco pelo arranhão da flechada, ele fortemente a abraça e lhe dar um beijo ardente. Cheia de emoção, a jovem cai sobre o seu príncipe e rolam abraçados pelo colchão de areia, trocando íntimas carícias e selando ali um perfeito relacionamento, entre duas pessoas de mundos tão diferentes.
O choque cultural neste momento cedeu espaço aos mais íntimos instintos carnais, em acasalamento. A partir deste momento o casal passa a viver uma verdadeira lua de mel naquele paraíso. Os dias se sucederam e eles continuaram se encontrando. Andavam de mãos dadas sobre os campos de relva verde entre os carnaubais. Tomavam banho nas muitas lagoas que ali existiam. A ardente paixão crescia a cada dia. Uma verdadeira história de amor.
Os índios começaram a desconfiar dos longos períodos de ausência de Intã, que nunca mais ficava na praia olhando as ondas. Mesmo assim transparecia viver um grande momento de felicidade. Era o início no mês de novembro do ano de 1755.
Naquele dia a chuva com fortes trovoadas iniciou cedo da tarde, Ará não deixou que a moça fosse embora, pois seria muito perigoso sair em meio a aquela tempestade. A chuva aumentava e o vento soprava com fortes rajadas, mudando de direção. Relâmpagos iluminavam toda a praia e eram seguidos de grandes trovões.
Parecia que o mundo ia se acabar. Na cabana, que embora tenha sido reformada por Ará, ainda permitia passagem de água, soprada pelo vento. Naquela noite o nível do mar subiu muito e uma onda gigante passou pela praia. O grande maremoto seguiu rumo ao continente avançando dezenas de quilômetros cobrindo toda a região costeira, destruindo árvores e aldeias atingindo os litorais do Piauí, Ceará e Maranhão.
Os Tremembés que habitavam a parte mais alta daquela região conseguiram fugir deixando para trás seus pertences. Intã e Ará continuaram firmes e agarrados, um ao outro, dentro de sua “tapera” que foi arrastada e soterrada pela onda gigante de água, areia e lama.
Ainda hoje, contam os moradores daquela região que em noites escuras é possível do alto das dunas se ouvir os gemidos de Íntã nos braços do seu príncipe encantado no Morro Gemedor.
OBS: História (“estória”) de ficção baseada na lenda do Morro Gemedor da Ilha de Santa Izabel no município de Parnaíba.
OBS: No dia primeiro de novembro de 1755, ocorreu um terremoto muito forte em Lisboa, Portugal e gerou um grande maremoto que atingiu o Nordeste brasileiro (Tsunami).
OBS: Esse conto da Lenda do Morro Gemedor foi publicado em 2011, no livro de minha autoria – Bury-Açu – O Espirito do Brejo – Contos, Causos e Lendas.