Arrepiante: a convenção das bruxas em Oeiras

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Situada na região central do estado do Piauí, Oeiras, a provinciana velhacap do Piauí é um rico cabedal de arquitetura colonial e história de nossa colonização. Povoada por curraleiros da Casa da Torre a antiga Vila da Mocha (criada em 1712) se tornou capital da Capitania do Piauí (na prática) em 1759.

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PRAÇA VISCONDE DE PARNAÍBA, EM OEIRAS-PI.

Por seus antigos casarões, sobrados e templos já se passaram muitas histórias, algumas arrepiantes. 

Um estranho e apavorante registro diz respeito a uma assembleia ou convenção de bruxas, o Sabá, reunião de tradição medieval europeia presidida pelo próprio demônio ou seus emissários aos sábados ou datas especiais, onde se praticava todas as sortes de orgias e diabruras.

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GRAVURA ANTIGA MOSTRANDO UMA CONVENÇÃO ONDE OS SERVOS DO DEMÔNIO APRESENTAM AO SEU CHEFE UMA CRIANÇA COMO OFERTA. FONTE: muraldecristal.blogspot.com

O nosso texto é baseado nos dois artigos do jornalista piauiense Efrém Ribeiro, publicados no jornal MEIO NORTE, Teresina Piauí, edições dos dias 13 e 14 de junho de 2004. Efrém, por sua vez, reproduz os textos de pesquisa do sociólogo e historiador paulista Luis Mott (n. 1946).

Segundo Mott, teria ocorrido no século XVIII em Oeiras uma destas convenções de bruxas ou Sabá, único evento do tipo registrado na história colonial do Brasil.

Ele descobriu em suas pesquisas em documentos encontrados na Torre do Tombo, em Lisboa, capital de Portugal, revelando a história da bruxa e escrava mestiça Joana Pereira de Abreu, de 19 anos, que esfregava suas nádegas nas igrejas de Oeiras. O registro está no Livro do Promotor da Inquisição.

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A TORRE DO TOMBO EM LISBOA GUARDA O MANUSCRITO DA BRUXARIA EM OEIRAS. FONTE: WIKIPEDIA.

O trabalho de Luís Mott é Uma Assembléia de Feiticeiras e Diabos no Brasil Colônia. O texto é o seguinte:

Poucos baianos sabem que ali na Jequitasia, onde hoje está a igreja de São Joaquim, na Água de Meninos, foi primeiramente a residência de um dos homens mais poderosos da Bahia colonial, Domingos Afonso Mafrense (natural de Mafra, Portugal), mais conhecido como Sertão, por ter sido ele, junto com os potentados da Casa da Torre, os desbravadores dos sertões piauienses. Data de 1674 a Conquista do Piauí e já em 1697 existiam espalhadas ao longo das principais ribeiras, 129 fazendas de gado, a maior parte delas tendo um vaqueiro branco como responsável secundado de 1 a 3 escravos negros que zelavam por uma ou mais centenas de gado vacum, distante um curral do outro três ou mais léguas. A mais populosa destas fazendas, a Aldeia de Cabrobó, em 1712 é elevada à condição de vila, passando a ser conhecida como Mocha, com freguesia dedicada a Nossa Senhora da Vitória, sujeita ao bispado do Maranhão. Nos meados do século XVIII, a população urbana da Mocha era constituída de 692 almas, distribuídas em 157 fogos, constando em seu distrito 182 fazendas e 103 sítios, perfazendo um total de 5.700 habitantes. População predominantemente mestiça; os brancos representavam por volta de 17%, os negros e mestiços 77%e os índios tão somente 6%. A moderna demografia histórica desmente o mito repetido pelos mais ilustres historiadores econômicos de que o escravo negro e mestiço não se adaptara à pecuária. Os índios sempre foram minoria nos criatórios sertanejos.

É exatamente na Mocha, em 1758, que documentamos a presença do único Sabá que se tem notícia até hoje no Brasil antigo. Sabá é o termo erudito para descrever uma assembleia ou conventículo de bruxos e bruxas que, segundo superstição medieval, se reuniam aos sábados ou em datas especiais, à meia noite, sob a presidência do Diabo ou de uma legião deles, praticando orgias e toda sorte de diabruras. 

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GRAVURA ANTIGA DA VILA DE OEIRAS, EXATAMENTE DE 1758, ANO DO SABÁ. FONTE: WIKIPEDIA.

Segundo nossa maior expert em demonologia colonial, a Dra. Laura de Mello e Souza, professora livre-docente da USP, inexplicavelmente o Sabá não teria migrado para a América Portuguesa, já que nossos feiticeiros e calunduzeiras teriam privilegiado outras formas de sincretismo medieval e afro-ameríndio, incluindo práticas e rituais heterodoxos, como as bolsas de mandinga e patuás, os calundus, as cartas de tocar, as orações fortes, os pactos com o Demônio, o quimbando, as curas de quebranto, etc. O manuscrito objeto deste ensaio foi por nós encontrado na Torre do Tombo (Lisboa), e está no Caderno do Promotor n.121, Livro 13 da Inquisição de Lisboa, datado de 27 de abril de 1758. Prepare-se o leitor para entrar no medonho reino dos infernos.

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UM HOMEM SE TORNA SERVO DO DEMÔNIO. GRAVURA MEDIEVAL EUROPÉIA. FONTE: www.diannusdonemi.com.br

Tudo começou quando o jesuíta Padre Manoel da Silva, missionário pedâneo nos sertões do Piauí e Maranhão, encontrou na Fazenda das Cajazeiras, uma escrava mestiça, Joana Pereira de Abreu, 19 anos, a protagonista desta história, que sob juramento confessou que há oito anos passados, então moradora da Mocha, próximo ao dia de São João, me contou a mestre feiticeira Mãe Cecília Rodrigues, mestiça, que o Demônio tinha torpezas com as mulheres. E que se eu queria falar e ter com ele, ela me ensinaria. Aceitei eu, como rapariga de nenhuns miolos e por outra parte de costumes de pouca ou nenhuma boa educação. Então me disse ela que eu havia de ir nua à porta da igreja da mesma vila da Mocha e que ali havia de bater com as partes traseiras assim nuas, três vezes na porta da igreja, indo sempre para trás, e havia no mesmo ponto de chamar por Tundá, que é o nome do Demônio. E que dali havia de endireitar nua para umas covas de defuntos que estão a um lado da vila, a onde chama o Enforcado, por ali ter se enforcado algumas vezes alguns delinquentes.

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IGREJA N. S. DO ROSÁRIO, EM OEIRAS, ONDE POSSIVELMENTE AS BRUXAS SE ESFREGAVAM.

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IGREJA N. S. DA VITÓRIA, EM OEIRAS, ONDE TAMBÉM POSSIVELMENTE AS BRUXAS SE ESFREGAVAM.

Contava ainda que naquele local houvesse de aparecer um Moleque com quem teria relações sexuais. Como parte indispensável do Sabá, Mãe Cecília ensinou à escrava Joana uma diabólica e blasfêmica ladainha, devendo assim dizer: Eu sou mestiça de respeito, que de mim se pode fazer caso; visto saia de veludo, boa camisa e bom sapato. Arrenego a confissão e os padres que me confessaram. Arrenego a comunhão, que recebem os que comungam. Nem ali creio que esteja o Sujeito que dizem ser Deus. Nem, eu conheço outro Deus mais do que o Tundá e não a Cristo. Arrenego a mãe da Mãe Maria e do seu filho Emanuel. A ladainha contumeliosa não parava por aí. Além de questionar a castidade de Maria e chamá-la de prostituta, as demais santas e santos eram igualmente insultados.

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UMA DAS MUITAS IMAGENS DO DEMÔNIO PARA A POPULAÇÃO EUROPÉIA. FONTE: www.clubedotaro.com.br

Continuou a mestiça: Fiz o dito em véspera de São João, à porta da Igreja, e dali assim nua, fui logo para o Enforcado. Tornei a fazer ali a mesma ladainha. Apareceu logo o Diabo em forma de Moleque, a quem Cecília, minha mestra, nomeava Homem.

Dizia tê-lo adorado antes de praticar com ele turpíssimos e nefandos atos e, em seguida, narrava seus atos com riqueza de detalhes que faria enrubescer os mais pudicos, confessando ter praticado uma universal torpeza multiplicada por todas e mínimas partes do corpo e dos membros. Sobre a figura do Demônio com que dizia manter tais relações nefandas, contava que  a vista descortinava só uma figura: esta umas vezes era homem, outras vezes um animal imundo, outras cachorro, outras bode, ou cabrito, outras cavalo, só estas. 

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BRUXA SENDO PENETRADA PELO DEMÔNIO. FONTE: fenixastra.blogspot.com

Não mais cria que havia Deus, nem inferno, nem coisa alguma de fé. Entregava-lhe a alma e o corpo. Chamava-o Meu Senhorzinho, minha vida, e meu coração. Cria e dizia-lhe que só ele me daria o céu. Que só ele me criou me remiu, e que não outro criara o céu, nem a terra, nem a mim. Confessava ainda ter pronunciado tremendas blasfêmias contra Jesus Cristo e sua Mãe. Tudo isto ocorreu durante os oito anos em que manteve  infame comércio e ensinos da Mestra Cecília.

Como foi amplamente documentado para os sabás europeus, também no Piauí as amantes do Diabo eram transportadas, de onde residiam, para o conventículo de diabos: voavam misteriosamente setenta ou mais léguas em segundos. Neste congresso há mulheres de todas as cores e castas. Também aparecem homens; mas estes, julgo, não serem homens, mas demônios em figura humana. Não nos falamos mais que estas palavras que nos dizemos umas às outras. Camaradas, nós viemos aos nossos amores. Depois de assim juntas nesse congresso e cada um com o seu, se fazem como cerimônias, as adorações e arrenegações, etc., depois de a Mestra Cecília dizer em voz alta para todo o congresso essas palavras: Entremos na nossa vida nova.

A mestra Cecília umas vezes parece ficar sentada no seu banco tripé; outras, com o seu Diabo, que aparece por detrás dela sentado e virado de costas para as costas dela; outras julgo fazer o que faziam todas as mais do congresso até cantar o galo. E logo desandava eu com as mais feiticeiras sessenta ou setenta léguas, e se nos abriam as portas, que estavam fechadas…

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NESTA GRAVURA DO SÉCULO XVI, UMA BRUXA SAI VOANDO PELA CHAMINÉ,. ENQUANTO OUTRA SE PREPARA PARA FAZER O MESMO. UM CAMPONÊS OBSERVA PELA PORTA. FONTE: POTTEREXPRESSBLOG.BLOGSPOT.COM

Tudo igualzinho o que diziam acontecer desde a Idade Média até o século XVIII as bruxas de Portugal e dos demais países da Europa. Digno de nota, entretanto, é o nome como as feiticeiras do Piauí chamavam ao diabo: Tundá, o mesmo étimo usado num calundu, um proto-candomblé de negras da Costa da Minba, hoje a poucos quilômetros de Brasília. Como o Sabá e Tundá chegaram ao Piauí e porque até hoje foi documentado apenas nestes sertões, ainda não há explicações. Coisas do Moleque.

Este é o texto de Mott, baseado no referido Livro de Inquisição do padre jesuíta Manoel da Silva, de 1758.

Teria existido no nosso Brasil-Colônia aqueles procedimentos típicos da bruxaria européia ou o caso de Oeiras seria uma manifestação isolada? Mas é justamente esse isolamento que nos conduz a crer que o fenômeno se manifestava em outras plagas do Brasil E até mesmo no Piauí, embora nunca em níveis parecidos aos europeus.  

Casos típicos de julgamentos pelas Visitações do Santo Ofício no Brasil referem-se a orações e benzeduras utilizadas para curar, proteger de algum mal ou, ainda, obter o amor, a atração sexual ou outros favores de alguém. Não seria bruxaria ou sabá propriamente ditos. A pesquisadora paulista Laura de Mello e Souza (N. 1953) nos fornece vários exemplos dessas orações, como a utilizada pela escrava de nome Antônia Maria: 

Aqui te fervo o teu coração com quantos nervos em teu corpo está. Com Barrabás, Satanás, com Lúcifer e sua mulher, todos se queiram ajuntar e no teu coração queiram entrar para que não possas estar, nem sossegar sem que a sentença a favor de (…) queiras dar, e tudo quanto te pedir queiras outorgar.

Ou ainda a de uma certa Maria Joana: 

O sangue de Cristo de dou a comer, o leite da Virgem Santíssima te dou a beber, suspiros, ais e as dores que a Virgem Santíssima deu quando viu o seu amado filho morto, os mesmo ais, e as mesmas dores, e os mesmos suspiros dês tu por mim à hora que não vieres comigo falar. 

Contava-se o caso de um tal Gaspar Coelho, julgado por sugerir fazerem-se hóstias de tapioca, de algumas pessoas que publicamente não respeitavam a imposição de comungar em jejum, de Fernão Pires, que batizava cachorros e, com mais frequência, de pura blasfêmia advinda da revolta. É o caso, por exemplo, de um preso chamado Francisco José, que renegava com violência os símbolos da fé diante de seus companheiros de cela, falando-lhes que São Paulo era um bêbado e um asno que não sabia o que dizia e mandando-lhes meter o crucifixo na parte mais imunda de seus corpos. 

Não sabemos o destino da mestra Cecília e de Joana Pereira de Abreu. Ignoramos se foram queimadas ou enviadas para masmorras de Salvador ou da Metrópole. Certamente tiveram um fim inglório, pois o padre Manoel da Silva registrou o caso, que passou a integrar o Livro do Promotor da Inquisição, que não costumava ser benévolo com bruxas ou infâmias anticristãs

A título de curiosidade, um estranho caso que lembra as bruxarias (voos e deslocamento), mas também as famosas abduções ufológicas aconteceu em 1559 no atual estado do Espírito Santo. Foi-nos legado pelo Padre Antônio de Sá, em carta de 13 de junho de 1559. É claro que a maneira de se expressar dos protagonistas é confusa, dado que naquela época não se falava em OVNI ou abdução, mas sim em demônios e luzes. Eis o teor da carta com o estranho caso:

O caso é o seguinte: tinha Vasco Fernandes, nosso principal, um filho por nome Manemuacu, o qual estava muito doente na aldeia da Vila. Estando ele assim, uma noite de grande tempestade o tomaram os demônios em corpo e com grande estrondo o levaram, arrastando e maltratando.

O padre Braz Lumenso o foi consolar (ao pai de Manemuacu), dando-lhe a esperança que, se não morto, que lhe apareceria, como de feito daí a três dias apareceu…O pobre índio contava que, depois de havê-lo posto no porto de João Ramalho, o levaram a Santo Antônio com tanto ímpeto e clamor que a si mesmo não podia ouvir nem entender; daqui o puseram no porto de Jaravaia e por concluir, diz que o puseram entre muitos outros, onde se fizeram muito mal. Aqui viu muitos fogos e mui horríveis. Finalmente, depois de todos esses martírios, o arrojaram entre uns mangues onde se maltratara muito e ficara fora de si com tantos tormentos como passara, que por isso não conhecia os seus quando deram sobre ele e fugiu deles como se foram demônios. Tudo isso permitiu o Senhor para que venha o conhecimento da sua lei, considerando perverso o domínio do Demônio.

Algumas coisas nos chamam a atenção no episódio fantástico narrado na carta do Padre Sá. O estrondo, no ato do rapto; o rápido deslocamento do índio de porto a porto,…com tanto ímpeto e clamor que a si mesmo não podia ouvir nem entender...E também os …muitos fogos e mui horríveis...Parece que o índio não eras o único raptado, pois ...o puseram entre muitos outros...

Não deixa de ser curioso este caso. Nunca é demais lembrar que o mesmo ocorreu em 1559 e a linguagem sobre qualquer fenômeno necessariamente incluiria o Demônio.