A pegada sagrada de Oeiras

Nas margens lajeadas do intermitente riacho Pouca Vergonha, uns 70 metros da secular construção de pedras Casa da Pólvora, está o mais intrigante dos mistérios da antiga capital do Piauí, Oeiras, localizada na porção central do Estado, a uns 340 km ao sul de Teresina.


IMAGEM DA PRAÇA PRINCIPAL DA HISTÓRICA OEIRAS



A MULTISSECULAR CASA DA PÓLVORA

 

Lá, na aconchegante Velhacap (Velha Capital), encontra-se uma pegada indelevelmente marcada num lajedo, conhecida como Pé de Deus ou Pé de Jesus, orientada no sentido oeste-leste.

A marca é de tamanho aproximado da de um homem adulto, embora o calcanhar seja um pouco estreito. Foi feita com sulco de contorno bem regular, apresentando uma suave concavidade em sua palma. Os dedos também foram polidos em concavidade. Estas depressões foram se aprofundando progressivamente com a raspagem da rocha para amuletos por antigos e atuais beatos e curiosos. Ao seu redor, os restos de incontáveis velas que os mais crentes acendem em prece e devoção.

 

A MISTERIOSA PEGADA DO RIACHO POUCA VERGONHA


A inabalável marca da devoção se perde na nebulosa noite dos tempos antigos do sertão piauiense. É um dos maiores enigmas do Estado, de origem seguramente pré-cabralina.

Elias Magalhães, escrevendo no Almanaque da Parnaíba de 1938, assim se referiu sobre as romarias ao pétreo símbolo sagrado oeirense:

“Romagens piedosas se fazem àquelas paragens, onde todos quantos se acham onerados pelo peso das doenças e das dores encontram doce lenitivo para suas mágoas.”

Os mais idosos oeirenses afirmam que seus bisavós e afins já encontraram gravadas, ali no riacho Pouca Vergonha, aquela impressão mística, hoje objeto de veneração, romaria e curiosidade. Tradição e memórias, passadas de geração a geração por séculos… Uma crença sempre fortalecida e arraigada, e que desafia a cética modernidade…

Segundo Rogério Newton (N. 1959), na sua obra intitulada Ruínas da Memória (1994), os mais antigos moradores de Oeiras efetivamente já conheciam por ali aquela memorável e sagrada marca. Diz ele:

Embora não se tenha ainda precisado a data do seu surgimento, é certo dizer que a lenda é no mínimo secular. Seu germe precede a criação da Vila da Mocha (Oeiras)?

Com certeza absoluta, Sr. Newton, este tipo de vestígio arqueológico precede não só a criação da vila da Mocha, como a própria “descoberta” cabralina do Brasil e mesmo as mais antigas civilizações de que temos notícia. É uma marca internacional da misteriosa e universal Civilização Megalítica.

Continua o Sr. Newton:

Maria José Evaristo Macedo, 98 anos, antiga moradora do Rosário, quando menina, ouviu de seus avós que o pé de nosso senhor existe desde que o mundo é mundo.

O Sr. Manoel Pereira Brito, guardião municipal da Casa da Pólvora, de 68 anos quando o entrevistamos (1999) afirma que o seu avô já conhecia a alta antiguidade da pegada. Disse-nos que a mesma fora feita em tempos fabulosos, em que Jesus andava na Terra e o Demônio o perseguia implacavelmente.

Conta o Sr. Brito que havia um pé de calumbi onde hoje está a marca venerada. O Divino, sendo acuado pelo Tinhoso, passou por baixo da planta, deixando miraculosamente moldada sua pegada no lajedo. O mesmo ocorreu ao seu tenebroso perseguidor.

Elias Magalhães já nos descrevia com comovente lirismo em 1938, O Pé de Deus e o Pé do Diabo, no Almanaque da Parnaíba.

“Lá está, impresso na rocha viva, um pé esguio, bem contornado e com todos os seus lineamentos bem definidos.

“Aquele pé, assim tão perfeito, dizem os oeirenses, vem do princípio da missão apostolar de Cristo sobre a Terra.

“Ele por ali passou e, como prova do quanto achara boa aquela terra habitada por uma gente de almas e corações puros, plantara, indelevelmente no rochedo, como sinal perene de sua predileção, a marca do seu pé divino, acostumado a regular o equilíbrio dos mundos.”


OUTRA TOMADA DO PÉ DE JESUS

 

Ao lado do Pé de Deus, um monte de pedras bem empilhadas assinala o local exato da pegada do Diabo, uma concavidade hemisférica. Reza a tradição que um dia o demo tentou agredir Jesus, sendo, porém derrotado. Em menosprezo ao capeta, as pessoa que visitam o local colocam uma pedra sobre a pegada do Diabo.

Com o passar do tempo, o monte cresce tanto que é necessário removê-lo, segundo nos informaram.   Novamente alguém coloca a primeira pedra e progressivamente forma-se um novo amontoado sobre a pegada maldita. Assim é que raramente se pode observá-la, pois está quase sempre recoberta.


O MONTÍCULO DE PEDRAS RECOBRE A “PEGADA DO DIABO”

 

Isso não é um costume tipicamente local. Nos Andes peruanos ainda hoje é costume indígena a formação de montículos propiciatórios denominados apachetas. Cada nativo repete fielmente a tradição multimilenária de seus antepassados, colocando em certos trechos de íngremes encostas uma pedra, o que resulta na formação de incontáveis montículos nas veredas dos Andes. Ali, no caso, não há nenhum ato de repulsa a seres sobrenaturais, mas a inabalável convicção de que seu ato será rigorosamente recompensado pelos deuses na forma de vigor físico para continuar seus árduos percursos pelas vertentes dos altiplanos.


APACHETA ANDINA

 

Voltando à pegada do Diabo, vejamos o que escreveu Elias Magalhães:

“Bem junto a ele, gravara-se na pedra um rastro monstruoso, grosseiro e redondo. Pelo cheiro de enxofre que dele se desprendia, captado pelo olfato apurado de velhas beatas, já em odor de santidade e com largo tirocínio na vida espiritual, verificou-se que o dono daquele pé só poderia ser o Demônio, anjo mau arremessado no deslumbramento dos céus ao despenhadeiro das trevas exteriores, onde só há choro e ranger dos dentes.

“Era o Pé do Diabo que, invejoso das homenagens prestadas ao Pé de Deus, pusera o seu ali bem perto, para ver se também obtinha adoradores.”

A tradição sertaneja atribui às cavidades hemisféricas do tipo da de Oeiras ao lendário e aterrorizante Pé-de-Garrafa, duende apavorante de nossas florestas. Nunca teria sido visto por alguém, sendo encontradas somente as suas pegadas, segundo a crença cabocla. Alguns o identificam ao Gritador ou ao Caipora. Assim o folclorista potiguar Câmara Cascudo (1898-1986) o descreve:

“O Pé-de-Garrafa é um ente misterioso que vive nas matas e capoeiras. Não o veem ou o veem rarissimamente. Ouvem sempre seus gritos estrídulos ora amedrontadores ou tão familiares que os caçadores procuram-nos, certos de tratar-se de um companheiro transviado. E quanto mais rebuscam menos o grito lhes serve de guia, pois, multiplicado em todas as direções, atordoa, desvaira e enlouquece. Os caçadores terminam perdidos ou voltam à casa depois de luta áspera para reencontrar a estrada habitual. Sabem tratar-se do Pé-de-Garrafa porque este deixa sua passagem assinalada por um rastro redondo, profundo, lembrando perfeitamente um fundo de garrafa. Supõe que o singular fantasma tenha as extremidades circulares, maciças, fixando vestígios inconfundíveis. Vale Cabral, um dos primeiros a estudar o Pé-de-Garrafa, disse-o natural do Piauí, morando nas matas como o Caapora e devia ser de estatura invulgar a deduzir-se da pegada enorme que fica na areia ou no barro mole do massapé.”

Este duende da pegada em forma de fundo de garrafa é, na verdade, internacional, tendo sido inclusive também identificado no folclore basco, segundo o erudito cearense Gustavo Barroso (1888-1959).

A identificação popular oeirense da cavidade circular ao Pé do Diabo está fortemente arraigada no folclore brasileiro. Diz Cascudo:

“Dar-se-ia também uma convergência dos atributos físicos do Diabo para o Pé-de-Garrafa. O rasto sempre constitui um forte elemento de identificação. Sua anormalidade denuncia implicitamente a deformidade do autor.  Cão-Coxo, Capenga, Cambeta, foram sinônimos demoníacos.”

E mais adiante:

“A pata circular, que lhe dá nome, não seria um distintivo satânico, do nosso velho Pé de Quenga?”

Como se percebe, enquanto quem as pegadas em seus modelos naturais são atribuídas a um homem santo ou a Deus, as redondas ou hemisféricas são atribuídas ao Demo.

O sertanista da Amazônia Renato Ignácio da Silva (? – ?) procurou uma explicação racional para as marcas em forma de fundo de garrafa que pululam no imaginário do caboclo. Seriam talvez a fantasia de uma estratégia nas incursões dos caiapós do Brasil Central para despistar seus inimigos. Diz ele:

“…mesmo quando são muitos, apoiam-se nos calcanhares, levantando os dedos dos pés. No rasto tão pequeno deixado pelo primeiro índio caiapó, todo o resto passará, repisando-o, deixando, no chão, uma rodela do tamanho do fundo de um copo. O que deu margem à lenda do bicho-garrafa, tão temido pelos crédulos sertanejos.”

Mesmo que essa curiosa estratégia de astúcia fosse usual entre os indígenas de todo o Brasil, não explicaria as gravações nos lajedos, feitas certamente com muita paciência e com instrumentos de percussão e não com pisadas de calcanhar em terra mole.

Nas vastidões do Brasil estão espalhados os herméticos símbolos Pé-de-Garrafa, que são do mesmo feitio e origem do de Oeiras. Fazem parte de uma antiquíssima e sagrada teologia universal da onipresente e quase ignota Civilização Megalítica, aquela que erigiu estruturas imensas de pedra como menires, dólmens, cromlechs, etc.

Nos lajedos às margens do rio Negro, em frente à antiga prefeitura de São Gabriel da Cachoeira (Amazonas) estão gravados vistosos fundos de garrafa. O mesmo ocorre junto à petróglifos multimilenares da ilha de Maracá (Roraima), pesquisados por nosso amigo Roland Stevenson (N.1932), descobridor do lendário Lago Manoa.

GRAVURAS EM FORMA DE FUNDO DE GARRAFA. ILHA MARACÁ, RORAIMA

 

O mais interessante de tudo é que, embora as marcas imitem com perfeição o molde imposto pelo fundo de uma garrafa, foram gravadas milhares de anos antes da invenção deste importante utensílio. A semelhança é, pois, mera coincidência.

Tanto as impressões em fundo de garrafa como as pegadas gravadas na rocha imitando as humanas são uma tradição multimilenária universal, arraigada nos quatro cantos do mundo.

Se a pegada do demo é famosa, a pegada comum de um homem o é ainda mais.

Na ilha de Sri Lanka (antigo Ceilão), uma montanha guarda uma marca sagrada de um pé humano. Os budistas dizem que é a marca de seu líder espiritual Buda; os cristãos a dizem de São Tomé; os hindus a reputam como de seu deus Siva; os islâmicos e judeus são concordes em atribuí-las a Adão…

Outas pegadas fartamente espalhadas pelo mundo são atribuídas a diferentes autores: Jesus, São Bartolomeu, fabulosos heróis e semideuses e, mais comumente, a São Tomé.

No Brasil Colonial essas marcas estavam por demais disseminadas quando por aqui chegaram os jesuítas. O contínuo costume dos colonos de raspar a laje para guardar seus fragmentos como amuletos ou talismãs destruíram a maioria das pegadas. O contínuo progresso acelerou a destruição das demais.

Nós as encontramos aqui no Piauí em Domingos Mourão, Brasileira, Inhuma, Piripiri, pimenteiras, etc. E mais no restante do país em São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), São Tomé das Letras (Minas), Ingá (Paraíba), Altinho (Pernambuco), Carolina (maranhão), etc.

Geralmente nossos nativos as atribuíam a um misterioso estrangeiro branco e barbudo, a quem chamava Sumé, e que um dia esteve entre eles em missão civilizadora, muitos séculos antes da chegada dos portugueses.

Por semelhança fonética, os jesuítas o identificaram a São Tomé, no oportunista intuito de melhor catequizar os nativos, demonstrando a ele que a palavra de Jesus já fora ouvida nesta terra em tempos idos.

O austríaco Schwennhagen (1870-1932) também estudou o pétreo símbolo oeirense, por volta de 1927. Diz ele:

“O mesmo sinal existe em Oeiras, no Piauí, e o povo sempre venerou esse sinal, desde a Antiguidade. A forma do pé, gravada numa chapa de pedra, é uma placa comemorativa, usada pelos povos antigos para indicar que naquele lugar esteve um homem, que foi um benfeitor do povo.

“A travessia de São Tomé pelo Atlântico nada tem de milagrosa. Naquela época a população das Canárias e das ilhas do Cabo Verde tinha ainda bons conhecimentos do Brasil e o zeloso apóstolo procurou una caravela para ir com seus amigos pregar a nova religião aos povos do outro lado do oceano.”

É evidente que o evangelizador e mártir cristão Tomé não tem nenhuma relação como as pegadas a ele atribuídas em todas as partes do planeta. E isso por um motivo muito simples: elas precedem em milhares de anos ao suposto santo. Mesmo o étimo brasílico Sumé lhe é muito mais antigo.

Nós preferimos atribuir as pegadas a antiquíssima e misteriosa Civilização Megalítica, de um povo desconhecido, oriundo quiçá de uma terra desaparecida no Atlântico Norte, que percorreu o mundo antigo há milhares de anos, numa missão ainda para nós um tanto obscura, mas com uma certa conotação astronômica, de natureza basicamente solar. É o que temos insistido em vários de nossos trabalhos.

E Oeiras, na porção central do Piauí, também foi palco de intensa atividade desta cultura solar misteriosa, na sua rota enigmática rumo ao Brasil Central…

 

Referências

Barroso, Gustavo. As Colunas do Templo. Civilização Brasileira Editora, RJ,1932.

Cascudo, Câmara. Antologia do folclore brasileiro. Global Editora, SP, 2001.

Magalhães, Elias. Almanaque da Parnaíba, 1938.

Newton, Rogério. Ruínas da Memória, 1994.

Schwennhagen, Ludwig. Antiga História do Brasil. Imprensa Oficial do Piauí. Teresina, 1928. 

Silva, Renato Ignácio da. Amazônia, paraíso e inferno. Biblioteca do Exército/Quatro Artes editora, 1970.