Uma das figuras folclóricas mais conhecidas e decantadas de todos os tempos do atual Parque Nacional de Sete Cidades, norte do Piauí, é, sem dúvidas, a do velho curandeiro Catirina, cearense cujo nome era José Ferreira do Egito (? – 1946).
A gruta onde viveu como um troglodita durante uma década é objeto de romarias e curiosidade até hoje. E não há turista ou curioso que visite o Parque e não se encante com a mística e trágica sina do ermitão.
GRUTA DO CATIRINA, NA “QUARTA CIDADE” DO PARQUE NACIONAL DE SETE CIDADES.
Dizem que alguns desgostos familiares ocorridos em 1936 no Ceará levaram o excêntrico Catirina a se mudar para o Piauí, para o lugarejo Bonsucesso, em Sete Cidades, onde permaneceu até 1938, quando resolveu então se isolar completamente.
O velho ermitão ocupou então uma das inúmeras furnas areníticas de Sete Cidades, na “Quarta Cidade”, a qual passaria a ser sua moradia, juntamente com os seus filhos Martinho e Dionísia. O rapaz tinha a saúde precária.
NESTA IMAGEM DE AUTORIA DESCONHECIDA, QUE CIRCULA NA INTERNET, O DO MEIO SERIA CATIRINA. OS OUTROS SERIAM ZÉ LIMA E JOSÉ DE SOUSA, QUE DESCONHECEMOS.
A furna é de exíguo espaço interno, não sendo suficiente para abrigar uma pessoa em pé. Possui, porém, uns 05 metros de profundidade, onde a altura diminui progressivamente rumo ao fundo.
No piso daquela pequena e baixa furna há uma cavidade circular e regular de uns 15 cm de profundidade, provavelmente feita por antigos indígenas da região para preparar suas tintas utilizadas na arte rupestre. O velho Catirina aproveitou o pilão na rocha para manipular suas panaceias.
PILÃO DO ASSOALHO DA GRUTA DO CATIRINA. OBSERVEM OS RESTOS DE VELAS QUE OS DEVOTOS ATÉ HOJE ACENDEM NO LOCAL.
Dizem que cercado de uma aura sobrenatural, o velho misantropo vestia um hábito de monge franciscano e preparava poções curativas para inúmeros males e mordidas de serpentes. Pessoas com sezão, sarampo, diarreia, febres, fraqueza, impaludismo e tudo mais seriam curadas com as mezinhas e rezas de Catirina.
O Sr. Cícero Romão, antigo funcionário do Parque, nasceu e se criou em Sete Cidades. Ainda muito jovem conheceu pessoalmente o místico eremita e afirma haver sido curado de uma picada de cascavel, através de raizadas, banha de mocó e rezas do Livro de São Cipriano. Também o seu já falecido irmão, Aderson nos relatou que da mesma maneira foi curado por picada de cascavel nos anos 1940.
O ANTIGO FUNCIONÁRIO DO PARQUE, SR. ROMÃO, FOI SALVO PELAS POÇÕES DE CATIRINA APÓS SER PICADO POR DE CASCAVEL. IMAGEM DOS ANOS 1990.
Durante dez longos anos o curandeiro e filhos residiram naquela estreita furna. Assim o cronista e boêmio teresinense Vítor Gonçalves neto (1925-1989) sintetizou a vida de Catirina com dados colhidos no local durante sua visita no ano de 1954:
Viveram á custa de esmolas deixadas pelos curiosos e alimentos comuns aquela região. Não lhes faltavam sempre preás para o almoço e alguma fruta na sobremesa. Vez por outra José Catirina ia à Brasileira (hoje Cidade) regressando todas as vezes com o saco provido para alguns dias. Além disso era bastante procurado pelos habitantes das redondezas para quem tinha fama de curador. Para picadas de cobra sabia fazer uma corrente de nós em cordão que era santa e infalível. E curava ainda qualquer espécie de dor com rezas fortes e exorcismos vários.
Mas um dia para outro o velho dera para enlouquecer, inventando coisas. Sua imaginação cansada virou-se para o misterioso encanto das Sete Cidades. Dizia que conversava com princesas encantadas em carruagens de ouro e que brevemente aquilo tudo se desencantaria. Falava em cantos do Galo Real acordando a madrugada e em toques de corneta anunciando o Mundo Novo. Via festins pomposos e mulheres de beleza incomparável nos campos adjacentes.
Segundo o Sr. Luís Morais, antigo encarregado do Parque, falecido há mais de dez anos, e que conviveu anos com Catirina muito antes da Criação do Parque, o curandeiro chegou a tal ponto de exaustão mental que já estava chamando os morcegos de sua gruta de meus anjinhos…
SR. LUIS MORAIS, EM FOTO DO ANO 2000. ANTIGO MORADOR DE SETE CIDADES, CONVIVEU MUITOS ANOS COM CATIRINA.
Vítor Gonçalves prossegue nos explicando a ruína psíquica e familiar do alquebrado ermitão:
Foi indo assim até ficar amalucado. Cabelos e barba compridos, unhas por fazer. Já parecia um bicho enfurnado de meter medo, lembrando os habitantes das cavernas quando o homem ainda não era mesmo gente. Pobre e infeliz José Catirina. Depois Martinho morrera num ataque epiléptico. Lá estava sua sepultura milagrosa atopetada de cruzes atestando muitos milagres. Em seguida Dionísia, já moça, fugira para casar com um roceiro do Bacuri (local onde fica hoje a sede do Parque).
Este filho de Catirina, morto aos 52 anos, foi enterrado ao lado da furna, ainda hoje estando lá o seu túmulo.
TÚMULO DE MARTINHO, O FILHO DE CATIRINA. ATÉ OS ANOS 1990 ERA UMA SIMPLES CRUZ EM UM TÚMULO MUITO RÚSTICO. DEPOIS FIZERAM ESTE.
A agonia do velho Catirina durou até o ano de 1946, quando morreu. Seu desejo era ser enterrado ao lado do filho. Porém, não sabemos em que circunstâncias, seu corpo teria sido levado até a cidade de Piripiri, sendo lá inumado.
Apagou-se uma página viva da História de Sete Cidades. Até hoje os devotos das cercanias acendem velas na gruta do curandeiro. O velho Catirina nunca foi esquecido, de geração a geração. Dizem que até hoje sua alma não arreda de sua pétrea moradia, desejoso que era de ser enterrado ali, no coração das encantadas Sete Cidades do Piauí.
Capítulo modificado de Arrepios e assombrações em Sete Cidades, de Reinaldo Coutinho. Edições Turtroya, 2001.
Outra fonte: Gonçalves Neto, Vítor. Roteiro das sete Cidades. Projeto Petrônio Portela. Teresina, 1992.