O Cabeça-de-Cuia é uma lenda genuinamente piauiense, forjada nas proximidades do que seria sua futura capital, Teresina, embora se achem nela algumas semelhanças com outros entes misteriosos. Assim, a maioria esmagadora das pessoas de outros estados do Brasil não conhecem a personagem folclórica nem a tragédia de sua vida.
Há um bairro na zona norte de Teresina, capital do estado do Piauí, localizado no encontro das águas do Rio Parnaíba com o Rio Poti. Trata-se do Poti Velho. Foi o primeiro núcleo populacional do que seria a cidade de Teresina. E foi lá que tudo se passou.
As origens do povoado e da Vila do Poti remontam a muito antes da criação da cidade de Teresina, artificialmente implantada às margens do Rio Parnaíba, em 1852, pelo então presidente da Província José Antônio Saraiva (1823-1895).
Os mais antigos registros do povoado retrocedem a dezembro de 1797, quando teve início a construção de uma capela, sob a invocação de Nossa Senhora do Amparo.
IMAGEM ANTIGA DA IGREJA DE NOSSA SENHORA DO AMPARO, NO POTI VELHO. REPRODUÇÃO.
Parece que a lenda, ou o que quer que a formasse, ocorreu por volta de 1800. O então lugarejo era uma pacata vila de pescadores. Ali vivia também um pescador de nome Crispim e sua velha mãe.
Após uma pescaria fracassada, Crispim foi repreendido por sua mãe. Não trouxera peixe e a única coisa que havia para o almoço seria um “corredor” de boi (um fêmur).
Irritado, Crispim se descontrolou e retirou o “corredor” da panela quente, e com ele, arrebentou a cabeça de sua mãe.
Agonizante no chão, a velha lhe proferiu uma maldição: se transformaria num monstro aquático, solitário e agressivo. Só desencantaria após devorar sete “Marias Virgens”…
Crispim caiu na real e lamentou desesperadamente o matricídio que praticara. Mas era tarde, pois a maldição lançada já estava em curso. Então o pescador se transmudou no ente aquático que passou a ser conhecido como Cabeça-de-Cuia: corpinho raquítico, pele lodosa e cabeção ovoide. Passou a viver no encontro das águas dos rios Parnaíba e Poti.
O duende emborca as canoas de seus antigos companheiros e depois os mata afogados. Assusta e ataca as lavandeiras e banhistas. Antigamente, muita gente não banhava no local, por medo do duende. Era a tradição passada de pai a filho. Quando alguém se afogava nas turbulentas águas dos dois rios, os pescadores atribuíam o sinistro á ação do Cabeça-de-Cuia.
CAPA DO NOSSO LIVRO “CABEÇA-DE-CUIA, MONSTRO OU ET?”, PUBLICADO EM 2002.
O bairro Poti velho, onde abunda a argila, é um centro cerâmico com dezenas de oficinas, que produzem jarros, potes, filtros, decorações, estatuetas, etc., sendo muito visitado por turistas diariamente. Ali se faz presente o Parque Ambiental Encontro dos Rios, criado por Lei Municipal em 15 de dezembro de 1996, contando com três hectares. integram o Parque decorados jardins, mirantes ecológicos, espaço para exposição, posto de informações turísticas, um aconchegante restaurante flutuante, etc.
TRADICIONAL RESTAURANTE FLUTUANTE. CRÉDITOS: ARIMATÉIA AZEVEDO.
Complementa estrutura do Parque um enorme monumento em cimento oco ao Cabeça-de-Cuia, rodeado pelas sete virgens da lenda. Enquanto o duende é de tamanho gigante, as virgens são do tipo roliço e de tamanho aproximadamente natural. Curiosamente, o artista que as modelou fez uma delas grávida…
MONUMENTO AO CABEÇA-DE-CUIA E AS SETE MARIAS VIRGENS. CRÉDITOS: ARIMATÉIA AZEVEDO
UMA DAS “VIRGENS” DA IMAGEM ANTERIOR ESTÁ GRÁVIDA.
É intrigante a associação que se faz entre os possíveis seres extraterrestres e as esculturas do Cabeça-de-Cuia, de nosso folclore. Tanto as figuras de ETs dos noticiários sensacionalistas (tipos Roswell e Varginha) bem como as imagens idealizadas em filmes de ficção (tipo O ET, de Spielberg) sempre nos induzem a ter uma aparência estereotipada dos supostos seres interplanetários muito semelhante ao nosso duende fluvial: corpinho raquítico, cabeça enorme, ovoide, olhos imensos, etc.
ESTATUETAS EM ARGILA DO CABEÇA-DE-CUIA
Como os turistas de outros estrados em geral não conhecem a imagem do nosso Cabeça-de-Cuia, ao ver suas estatuetas, dizem uníssonos: “É o ET!”
Os próprios artesãos-ceramistas do Poti Velho confundem um ET com o Cabeça-de-Cuia, como pudemos observar em março de 2002. Com efeito, fotografávamos uma estátua de cerâmica de um ser cabeçudo, de uns 60 cm de altura, na porta de uma oficina de oleiros. Quando perguntamos ao modelador se aquele era o nosso Cabeça-de-Cuia, ele respondeu um tanto constrangido:
Eu quis fazer mesmo foi um ET. Mas o povo chama é de Cabeça-de Cuia. As vezes a gente faz um Cabeça-de-Cuia e o povo chama é de ET.
ESTÁTUA DE UM ET, POTI VELHO, TERESINA-PI. DO NOSSO LIVRO: “CABEÇA-DE-CUIA: MONSTRO OU ET?” (2002).
No nosso estudo descobrimos, entre outras coisas, que o Cabeça-de-Cuia, embora seja um ente aquático, é também um ser ígneo, ou seja, ligado ao fogo. Às vezes aparece como uma luz misteriosa deslizando no rio, segundo ouvimos dos mais antigos moradores do Poti Velho.
Achamos reflexos da lenda também afastados de Teresina, inclusive no Delta do Parnaíba. Porém, quanto mais nos afastamos de Teresina, o Cabeça-de-Cuia vai perdendo suas características originais. É, portanto, uma legítima lenda piauiense e de feições puramente teresinenses.
Há uma tradição de seres fantásticos da estirpe Cabeça-de-Cuia fazendo estripulias e peraltices nos rochedos da serra do Canto do Inferno, às margens do Rio Longá, município de Buriti dos Lopes, norte do Estado. Ao contrário do duende do Poti Velho, estes do Longá não fazem mal a ninguém, embora assustem sempre que quer que os avistem.
Também achamos alguma relação entre o nosso duende e o Caipora, o duende das florestas que defende as caças e masca fumo. E ainda certa semelhança com seres folclóricos e sobrenaturais de Portugal.
O que seria o nosso Cabeça-de-Cuia? Um simples mito? Uma alegoria? Um ET? Um ser criptozóico?
O certo é que, dizem os maliciosos, até hoje o Cabeça-de-Cuia procura sete “Marias Virgens” para desencantar…