A procissão dos mortos

 No nosso livro ANTIGUIDADES VALENCIANAS (2000), descrevemos uma interessante lenda urbana sobre uma procissão sobrenatural, que vara as madrugadas da pacata e provinciana cidade de Valença do Piauí, conhecida como Cidade-Sorriso, no centro-sul deste Estado. Vejamos na íntegra seu conteúdo:

“A Procissão dos Mortos é uma das mais interessantes lendas do município valenciano, cujo desenrolar ocorre entre as igrejas de Nossa Senhora do Ó e a de São Benedito, no centro da Cidade, durante o Corpus Christi. Em suma, uma autêntica lenda urbana.

“Dizem que, no final do século passado, uma ex-escrava de nome Prisilina, tendo dificuldade em conciliar o sono, perambulava pelas tranquilas madrugadas, de uma igreja à outra. De aparência esquisita, cabelos arrepiados e olhos esbugalhados, Prisilina estava mais para assombração do que para assombrada.

“Mas, aconteceu que, certo dia, a madrugadora, ao cabo de um certo momento ouviu, na porta de seu barraco, um canto religioso:

“Perdão, meu Jesus.

“Perdão, Deus do amor”.

“Perdão, Deus clemente.

“Perdão, Deus Senhor…”

“Assustada e intrigada, Prisilina imaginou unicamente ouvir o cântico de uma procissão, não faltando, inclusive, o som da tradicional bandinha… Mas, procissão àquela hora da madrugada? Tudo soava muito estranho, confundindo o raciocínio da ex-escrava.

“Como boa cristã, Prisilina pôs-se a rezar e observou aos poucos o aparecimento dos primeiros integrantes do cortejo, desfilando solenemente pela frente de sua casa.  Presenciou homens e mulheres impávidos e vestidos formalmente,  portando vistosas velas, estandartes religiosos e o andor.

Mas, procissão àquelas horas? Prisilina presenciava boquiaberta as estranhas pessoas do cortejo até que este ultrapassou a sua casa. A última pessoa da fila, uma mulher de aparência vampiresca, entregou bruscamente a longa vela que carregava a Prisilina, dizendo em tom grosseiro e mecânico:

“Pega, amanhã eu quero receber!”

“Assustada, atônita e sem nada entender, Prisilina compenetrou-se que estava mais por fora do que limpador de vidraça. A misteriosa mulher da procissão e todo o cortejo desapareceram subitamente, ao se aproximarem da igreja São Benedito. Cessaram os rumores, os cânticos e as orações…

“Ainda ariada, Prisilina entrou em pânico ao notar que a vela que recebera se transformara num osso humano (um fêmur). Aterrorizada, a pobre negra correu alucinada para a casa do cônego Acylino Portela, que exerceu suas funções sacerdotais em Valença (e Aroazes) de 1878 a 1916.


DONA PRISILINA, EM ARTE DE ANTÔNIO JOSÉ

 

“Balbuciante e trêmula, a velha escrava conseguiu, com muita dificuldade, explicar o tétrico acontecimento. Após ouvir atentamente  o macabro relato, o padre Acylino lhe recomendou arranjar uma Maria Virgem (uma criança). As duas teriam que aguardar a procissão, e a criança devolveria a vela à mulher-assombração. O padre explicou que a vela que recebera era uma intimação para ela integrar brevemente o cortejo…

“Prisilina procedeu como lhe recomendou o cônego e com a criança, aguardou, na madrugada seguinte, a volta do cortejo pavoroso.

“Novamente com cânticos, orações e a bandinha, a procissão desfilou frente a casa da ex-escrava. Ao passar o último componente do séquito, a mulher-visagem, a criança lhe entregou o osso, conforme foi orientada.

“Ao receber o osso de volta, a mulher sobrenatural voltou-se para a trêmula Prisilina e disse:

“Foi o que te salvou. Essas são as horas mortas. Horas dos vivos estarem dormindo e os mortos em penitência…”

“O cortejo seguiu adiante e desapareceu bruscamente dos olhos de Prisilina e da criança que lhe salvou.

“Assim, a ex-escrava evitou fazer parte, num futuro próximo, do mesmo cortejo sobrenatural, ou seja, morrer… As orientações do padre Acylino e a presença de uma alma pura (a criança), a livraram do tormento dos mortos que nunca dormem…

“Esta tradição é antiga na cidade de Valença, e fala-se que várias pessoas já teriam visto ou ouvido os rumores da procissão durante altas horas da noite.

“Quem passar uma agradável noite de boemia na Cidade-Sorriso, pode se deparar subitamente  com a procissão dos Mortos. Neste caso, assista respeitosamente o cortejo. Mas, cuidado: não aceite velas de estranhos…”

ENCENAÇÃO DA PROCISSÃO DOS MORTOS