Ficção literária
Os rústicos túmulos, colados um ao lado do outro, existentes em um pequeno cemitério abandonado, localizados na Fazenda Carnaúba Torta, na região do Rio Pirangi, desperta curiosidade. Contam os mais antigos que ali foi enterrado um casal de jovens cearenses, após terem sido mortos de forma fria e cruel por um pequeno grupo de cavaleiros, vindos da região, além do rio Ubatuba, no pé da Serra da Ibiapaba.
No final do século XIX, por volta do ano de 1888, ainda havia um forte sentimento conservador, entranhado na sociedade, notadamente interiorana, onde as mulheres eram criadas, desde meninas, sob uma forte educação voltada para o lar e o casamento. A maioria desses casamentos era realizado por interesse entre as famílias tradicionais. Naquela época, se uma mulher perdesse a virgindade, passava a ser tratada de forma discriminada na sociedade e até mesmo no âmbito na família.
É uma história triste, porém uma realidade praticada na época do Brasil Império. Se uma moça estivesse prometida para casar, ela não poderia mais ter outro relacionamento de acordo com suas convicções de paixões. Não tinham as mulheres o direito da livre escolha dos seus maridos.
Ao longo de muitas décadas e até séculos, embora tenha sido muito combatido pelos legisladores, estudantes do Direito e pelos movimentos defensores dos direitos humanos, as estatísticas do século 21 ainda registram números crescentes de crimes passionais contra mulheres, fazendo surgir leis duras, com severas penas, com objetivo de minimizar esse problema, conforme Artigo 121 do Código Penal Brasileiro.
No ano de 2015, com a aprovação da Lei Federal 13.104/15, definiu o chamado feminicídio, termo novo, porém amplamente utilizado na mídia e que trata, exclusivamente, do assassinato de mulheres por razão de gênero.
O direito do homem, de matar a sua mulher sob a alegação da legítima defesa da honra. foi legalmente riscado do mapa da nossa história, com a promulgação da Constituição Imperial de 1831, embora a prática desse tipo de crime continue até os dias de hoje, sendo isso lamentável.
Em 1888, uma jovem chamada Angélica, de 18 anos de idade, estava de casamento marcado para o início do ano seguinte, mas a família já havia iniciado a confecção do seu enxoval. O noivo era Manoel Pacifico, um jovem viúvo, sem filho, cuja esposa havia morrido de parto, juntamente com a criança.
O casamento havia sido combinado entre os pais, sem que a moça tivesse concordado. Naquela pequena povoação, localizada no pé da Serra, os ricos fazendeiros viviam em harmonia entre eles. Cada um mandando em suas terras que se estendiam por muitas léguas. Eram verdadeiros senhores feudais.
Não era comum, mas quando acontecia alguma desavença, essas geralmente eram resolvidas na base da bala.
A moça mantinha, há vários anos, um namoro, às escondidas, com um rapaz da mesma idade dela e que morava perto da sua casa. A única pessoa que sabia daquele relacionamento era a mãe do jovem que dava cobertura aos poucos encontros que aconteceram entre os mesmos.
O Coronel Pacífico Andrade, pai do noivo, só tinha mesmo de pacífico o nome. O pai da noiva era um veterano combatente do Exército Brasileiro e tinha sido delegado na cidade de Sobral.
Capitão Raimundo Rodrigues, o pai da noiva, era reformado do Exército, após ter sido ferido gravemente, em combate, na Guerra do Paraguai.
O jovem Ramiro era filho do fazedor de celas, chicotes, arreios e outros artigos em couro. Senhor Manoel era também cearense, casado com uma maranhense chamada Raimundinha. Manoel e os filhos, Ramiro e Bernardo, trabalhavam no pequeno curtume no quintal da grande casa que ficava ao lado igreja.
O capitão era viúvo e morava com uma governanta e com os filhos Venâncio, José e Angélica, em um belo sobrado, no meio de um sítio, na mesma rua da igreja, distante apenas uns 1.000 metros.
Coronel Pacífico era rico fazendeiro e morava com seus cinco filhos: três moças e dois homens. O mais novo, Pedro, era advogado e Manoel era o encarregado das propriedades da família. A sede da fazenda ficava pouco mais de uma légua do povoado.
Naquela região, as famílias tradicionais costumavam realizar os casamentos entre elas, havendo o jogo de interesse financeiro e político. O casamento seria um dos eventos mais importantes daquelas redondezas. Na verdade, isso acabaria por se tornar numa maior desavença entre as famílias Rodrigues e Andrade, iniciando uma série de assassinatos que durariam por várias gerações.
Após uma conversa com Angélica, com a ajuda da mãe, Ramiro preparou três cavalos; um deles foi carregado com armas e mantimentos, o suficiente para uns dez dias, que era o tempo necessário para chegar até o Maranhão, onde moravam seus parentes. Raimunda tinha certeza de que, lá, Angélica e Ramiro estariam bem e poderiam viver em paz.
Antes da meia-noite, quando todos dormiam, no povoado, o casal iniciou a execução do plano de fuga, parte saindo pelos fundos do sítio, em direção ao rio Ubatuba, na divisa do Ceará com o Piauí. A ideia era manter uma diferença de seis horas à frente, caso fossem perseguidos. Com certeza, no raiar do dia, alguém ia tomar conhecimento do desaparecimento daqueles jovens.
O caminho era longo e os campos estavam alagados, devido à estação chuvosa que naquele ano havia se antecipado para o mês de dezembro.
Chegando ao rio que estava cheio, era preciso encontrar um lugar mais raso para o cruzamento, sem molhar as armas, roupas e os alimentos. Ramiro conhecia muito bem aquela região, pois costumava fazer entrega de celas e outros artefatos em couro aos clientes do seu pai.
Logo logo essa etapa estaria superada. Galoparam pelos campos abertos do Piauí, entre os carnavais. Tinham que seguir na direção contrária do nascente, com uma pequena inclinação para o sul. Alta madrugada, era possível perceber os primeiros raios de sol. Mesmo forçando os cavalos, tinham que manter o ritmo acelerado; era uma questão de sobrevivência.
No povoado, a notícia do “roubo da moça”, como era conhecido antigamente, um fato dessa natureza, logo se espalhou e chegou à fazenda do Coronel Pacifico que ficou muito revoltado com a vergonha que o filho estaria passando.
Para ele aquilo era motivo de vingança com muito sangue. Determinou ao seu filho Manoel, o noivo, que lavasse a sua honra com o sangue do seu rival, mas que trouxesse viva a moça desonrada para entregar aos pais. Pacífico não queria ter problemas com o velho combatente, o Rodrigues.
Manoel chamou cinco dos seus homens mais valentes e mandando escolher os melhores cavalos, preparou mais duas montarias com armas e mantimentos. Não sabiam ao certo a hora da fuga, mas imaginavam que eles estivessem pelos menos umas nove ou dez horas à frente. Seguiram também no rumo, olhando os rastros dos cavalos, ainda muito visíveis no chão lamacento.
Fria e escura noite. Próximo ao pequeno cerro, avistaram uma pequena cabana e em péssimas condições de conservação, onde talvez tivesse servido de apoio aos trabalhadores do corte de carnaúba. Uma parada maior era imprescindível, pois, após a saída do povoado, na noite anterior, os cavalos estavam realmente cansados e com fome. Enfadados da longa cavalgada, dormiram abraçados.
Era a primeira noite deles juntinhos. Na manhã seguinte, às seis horas, continuaram a fuga, mantendo o mesmo ritmo de galope. Seus cavalos eram jovens e fortes.
No dia seguinte, já com o sol bem alto, Ramiro perdeu seu rumo. Quando já estava se desesperando, encontrou uns homens tocando um comboio de jumentos e burros que seguiam rumo à divisa do Piauí com o Ceará. Eram ambulantes transportando mercadorias diversas.
O casal se aproximou e perguntou sobre o caminho a seguir em direção ao rio Parnaíba. Eles foram orientados a seguirem rumo às elevações que ficavam ao sul até atingirem o rio Pirangi e deveriam continuar seguindo o curso até sua desembocadura em um rio muito largo, o Parnaíba; do outro lado, já seriam terras do Maranhão. Porém, foram avisados de que estavam a muitas léguas de distância.
Ao final do terceiro dia, sempre seguindo o rio, em direção à sua foz, o casal não seguia, sem ter certeza de que estaria realmente sendo seguido. Como os cavalos já estavam muitos cansados, diminuíram um pouco a cavalgada. No final do dia e início da tarde, o casal atinge uma pequena cachoeira, no rio, mas continua a viagem. Um pouco mais adiante, já resolve acampar em bom lugar, localizado entre o rio e umas pequenas formações rochosas no meio de uma exuberante vegetação.
Antes do pôr-do-sol, ali deitado, à sombra de uma frondosa árvore, o casal descansava já sonhando com a vida livre e tranquila que teria, quando chegasse ao povoado do outro lado do rio Parnaíba.
De repente, é surpreendido com a chegada de seis homens, montados em cavalos, atirando contra eles. Ramiro e Angélica, abrigados entre umas formações rochosas, resistiram bravamente aos perseguidores. Ela atirava com perfeição, pois desde menina havia sido treinada pelo pai. O tiroteio foi escutado por um grupo de caçadores que se dirigiu para o local para averiguação.
Ao observar homens armados se aproximando pelos flancos, Manoel Pacífico encerra o ataque e chama os seus homens e todos fogem em seus velozes cavalos, deixando para trás os seus mortos e feridos.
Três homens foram encontrados: dois mortos e um gravemente ferido que não resistiu e morreu horas depois. Ramiro também estava morto com uma bala no meio da testa. Angélica estava também ferida com uma bala na região do estômago e outra no ombro. Viveu ainda o suficiente para contar sua triste história aos caçadores. Fez o seu último pedido, para ser enterrada com o seu namorado ali mesmo, desde que fosse um ao lado do outro numa mesma cova e os mesmos tocassem fogos nos três outros corpos.
Os caçadores fizeram, exatamente, conforme o seu pedido. A saga do casal morto, na região da fazenda Carnaúba, quase 140 anos depois, virou uma lenda na região do Vale do Rio Pirangi.