Texto transcrito por Diderot Mavignier do Almanaque da Parnaíba de 1935.
SKEL – é o cão feliz e agradecido que mora na residência dos ingleses da Booth.
Sem hesitação e sem preguiça, acompanha os donos para qualquer parte, sempre alegre folgazão e cheio de vida. É notável pela robustez do corpo, pela vivacidade do olhar e pela alegria de viver que revela a todo instante. Veio da humildade e da miséria como um filho exposto e renegado de um lar ingrato e infeliz.
Cão sem dono, notívago e asqueroso, diante do seu então lastimável estado, foi encontrado, ao amanhecer, pelos Srs. Smith e Gamon caído sobre as relvas carapinhadas da velha Praça da Matriz [hoje Praça da Graça]. Quase sem poder dar um passo, tendo apenas os ossos por cima da pele gafeirenta e dois olhos esbugalhados a gotejar lágrimas, provocou logo um sentimento de piedade na alma dos filhos da velha Albion [Inglaterra]. Conduziram o pobre diabo para o vasto quintal do seu palacete, à rua Dr. João Pessoa [hoje Avenida Getúlio Vargas] nº 41.
O desgraçado tremia de frio e de instintivo pavor que lhe causara o desconhecido. Evidentemente ele tinha razão. Parece que adivinhava que a primeira ideia dos seus benfeitores era a de abreviarem-lhe a existência. Realmente faz parte dos preceitos dos sportmen, tirar a vida do animal incurável, quando em sofrimento agudo. A morte é o supremo remédio.
E assim foi o desgraçado condenado a ela, sumariamente.
Mas, como diz a sabedoria popular, que o homem põe e Deus dispõe, ou com melhor aplicação ao caso dizem os teósofos que a Lei do Karma, oriunda dos princípios da Sabedoria divina, atinge a todos os reinos da Natureza, a sentença de morte daquele cão abandonado foi comutada quando os ingleses notaram, ao engatilhar o revólver sacrificador, o olhar meigo, compadecido, inteligente e grato da vítima.
̶ Talvez possamos salvar esse miserável bichinho?
̶ Então não o matemos…
Estava salvo o cachorro, diante dessa ponderada defesa e da sentença confirmatória. Deram-lhe, então, água e o cão bebeu com voraz sofreguidão.
Em seguida deram-lhe um, dois, três, quatro e até dez pedaços de carne fresca que foram devorados da mesma maneira.
Finda essa experiência, resolveram iniciar o tratamento do seu “dog” que foi logo batizado com o nome de Skel (abreviatura de sleleton – esqueleto).
Extraíram-lhe das orelhas centenas de monstruosos carrapatos, tão cheios de sangue que privavam a audição do animal. Outros tantos ou mais lhe foram arrancados do corpo, que foi logo após banhado com sabão carbólico e untado de pomada mercurial.
No dia seguinte já o cão revelava muito melhor disposição, não obstante ter sido atacado de terrível evacuação sanguínea pelo excesso de alimentação na véspera. Entrou em dieta láctea e passou a receber curativos com uma paciência que causava admiração.
Quinze dias depois já o Skel era um animal sadio, lépido, limpo e notável pelo sentimento de gratidão que revelava aos seus benfeitores.
Hoje o Skel é um dos cães mais venturosos e dos mais inteligentes que conhecemos. Compreende indistintamente o “venha cá” ou “come here”, o “vá embora” ou “get out” e torna-se imediatamente amigo das pessoas que entram em relações de amizade com os seus donos.
A única lição que o Skel nunca pode compreender, apesar de ser tratado a veia de libra, é que não deve aceitar comida fora de sua casa. Com toda abastança em que vive, aceita com agrado um minguado pedaço de sandwish, de carne, de queijo ou de qualquer coisa que lhe ofereçam, e é capaz de voltar ao local onde recebe o agrado no dia seguinte, às mesmas horas, para idêntico fim.
Talvez seja a lembrança da miséria que ainda perdura na alma sensitiva do Skel, provocando esses dasaires…
Mas como é sempre louvável o sentimento de gratidão, seja ele embora de um cachorro, consagramos também ao ”Skel” esta página de honra, ilustrada com o seu cliché fotográfico, ao lado do seu benfeitor.
Almanaque da Parnaíba, 1935.
Benedicto dos Santos Lima – “Bembém”.