João Cartomante: Uma história de injustiça, sofrimento e morte. No ano de 1956 entre Piracuruca, Cocal e Parnaíba

O artigo “João Cartomante” narra todo o episódio do trágico assassinato de um caixeiro viajante, que após ser apontado como cúmplice de um roubo, na cidade de Piracuruca, foi preso em Parnaíba, e recambiado à Cocal.
Passou a sofrer, naquela cidade, as piores torturas que um ser humano poderia suportar. Após sua morte, vários fenômenos foram atribuídos ao poder espiritual do beato; transformando o, num tipo de santo da região.
Os temas abordados são de cunho historiográfico e envolvem as cidades citadas acima. Catalogados através da história oral e documental da região, envolvendo: memória, história, política, religião e movimentos sociais, que foram unificados neste artigo, considerado como uma das páginas mais tristes e trágicas da história da região norte do estado do Piauí, e para poder entendermos o amplo processo de criação do mito em torno de João Cartomante “O Milagreiro”.

João Passos

A extraordinária história do caixeiro viajante que após ser torturado e assassinado, por um crime que não cometeu, torna se um tipo de santo ou beato do lugar. Segundo a história de nossos antepassados, houve um fato trágico na cidade de Cocal que mudou todo contexto histórico deste município, colocando-o, na história, como: A cidade sem lei! O fato aconteceu no verão do ano de 1956, quando viajava de trem, o jovem, João Xavier Arruda.

Era um homem de estatura baixa, cor branca, gordo, aparentando uns trinta a quarenta anos de idade, apelidado de “João Cartomante”, alcunha, adquirido pela profissão que exercia: O de pôr cartas e ler mãos para “adivinhar o futuro”. Tinha mesmo como nome de registro, João Francisco Arruda, mas foi o nome de João Cartomante que o imortalizaria como fato histórico importante do município de Cocal.

Era caixeiro viajante da cidade de Sobral, no estado do Ceará. Um tipo de comerciante ambulante que vendia joias, bijuterias, perfumes, cremes, talcos, espelhos e outros. Descendente de família de circo, desenvolveu habilidades no trato das adivinhações. Em uma de suas viagens, após passar pela cidade de Piracuruca, chegando à estação ferroviária de Cocal, o vagão em que viajava foi invadido por policiais, que procuravam uma ladra no mesmo trem em que estava.

Descobriram, imediatamente, que a procurada, era exatamente aquela mulher de cor negra que ao seu lado estava sentada. Os policiais anunciaram que a mesma estava detida. No momento da prisão, a mulher balbuciou algumas palavras com os policiais, dizendo ser inocente e que o responsável pelo roubo era João Cartomante, apontando o, pois a mesma alegava não ter joia alguma e acusou o rapaz de tê-las escondidas.

Os policiais ignoraram suas palavras e revistaram-na, nada encontrando. Mesmo assim, pela acusação do roubo das joias, motivo suficiente para que fosse decretada a prisão daquela senhora que, momentaneamente, foi levada a Delegacia de Polícia de Cocal. Após forte interrogatório, a mulher conhecida como, Maria Fininha, afirmava que as joias roubadas tinham ficado na bagagem e que o seu parceiro, João Cartomante, detendo-as, carregou consigo para a cidade de Parnaíba.

A prisão de João Cartomante

Imediatamente, foi transmitida, através de código Morse, via telégrafo, a acusação de que João Cartomante era o responsável pelo roubo e que deveria ser preso imediatamente, logo ao desembarcar na estação ferroviária de Parnaíba. Quando a velha Maria Fumaça chegava à plataforma de desembarque, vários policiais esperavam o acusado que ao desembarcar na estação, foi imediatamente preso, e ouvindo as acusações, gritava afirmando que era inocente e nada daquilo sabia.

    

Afirmava categoricamente que mal conhecia aquela senhora, e que ela o acusara só para escapar da prisão. João Cartomante foi recambiado à cidade de Cocal, e ao chegar a estação, foi jogado para fora, como um animal já condenado. Foi levado pelas ruas, sendo exposto a humilhação pública, além de receber inúmeras pancadas invertidas pelos policiais sob o comando do delegado Homero e seus subordinados.

Começam as torturas e o clamor de João Cartomante

No trajeto que o levava a prisão, foi acompanhado por dezenas de pessoas que zombavam do infortúnio. Gritavam palavras de ordem e ofensas pessoais. Durante dias foi torturado, vindo a apanhar de chicote, cabo de aço, que cortavam a pele, palmatória, chegando até o obrigarem a beber óleo de rícino, como forma desumana de minar as forças e de punir o “criminoso”.

Já não suportando mais aquele sofrimento que se arrastava há dias, passou a confessar o crime, pois pensava ele, ser a única forma de amenizar as dores provocadas pela brutalidade dos soldados. Mas esta atitude só fez com que se agravasse o quadro. Desorientado, passou a indicar prováveis lugares onde as joias estariam enterradas. E sempre à noite, era levado ao local indicado por ele, nos arredores do município de Cocal, onde os policiais faziam-no cavar o chão até mais de um metro de profundidade, e nada encontrando, judiavam; e não satisfeitos, enterravam-no, até meio corpo, só para torturá-lo com pontapés e outros.

Todas as noites ele indicava inúmeros lugares onde provavelmente estariam enterradas as joias, com isto, ia adiando a sua morte. Na Delegacia de Polícia, proibiram-no de beber e comer até que aparecessem as joias. Os castigos continuaram cada vez mais duros chegando ao extremo de extraírem suas unhas com alicate; queimarem seus testículos com fogo colocado em estopa embebido em gasolina, tocavam seu corpo com pontas de cigarros, etc.

Sua agonia e seu sofrimento acompanhado de fome e sede o obrigava a beber sua própria urina para saciar um pouco a sede. Várias pessoas testemunharam que o mesmo lambia o chão de ladrilho na busca de saciar a fome. Seus gritos eram ouvidos nas madrugadas pela pequena população da cidade de Cocal, que lamentava quando o silêncio da mesma era quebrado pelos gritos desesperados e apavorantes daquele pobre homem, que se valia de todos os santos e da padroeira daquele lugar.

Pedia que acabasse com o seu sofrimento, pois ele não aguentava mais. Só que a população nada podia fazer.; “Era a lei!”. Alguns contam que seu corpo foi amarrado e arrastado pelos soldados montados em cavalos pela zona rural do município, e entrando na pequena cidade, dava voltas em torno da praça, num espetáculo apavorante. Essas torturas sempre aconteciam após horas de procura inútil pelas joias e as mesmas não eram encontradas nos lugares indicados por João Cartomante.

A morte de João Cartomante

O que se sabe é que alguns homens de Cocal, entre eles: José da Cunha Frota, Vladimir Lopes e outros foram denunciar às autoridades de Parnaíba, o que estava acontecendo na cidade de Cocal, e como era tratado o prisioneiro. O comando de Parnaíba exigiu ao delegado de Cocal, que trouxesse, imediatamente, o homem à cidade de Parnaíba. O delegado Homero juntamente com o soldado Raimundo (Raimundo Soldado), recebendo este intimado, levaram o preso num antigo jeep de propriedade do prefeito da época, Joaquim Vieira de Brito.

No entanto, ao se afastarem do centro da cidade, resolveram surrá-lo de forma brutal, que o mesmo não chegou com vida à cidade de Parnaíba, falecendo no quilômetro 16 (Baixa da Carnaúba). Segundo alguns moradores, os policiais sabendo da desgraça acometida, resolveram assim mesmo levar o corpo de João Cartomante à delegacia, e lá chegando, tomaram o cuidado de sentá-lo de forma ereta, em uma das cadeiras da companhia e pondo ainda sobre sua cabeça, um chapéu para que não fosse logo descoberto o assassinato.

Quando os policiais da citada delegacia de Parnaíba foi interrogar o réu, descobriram que se tratava de um defunto, e ao procurarem os policiais assassinos, os mesmos já tinham se esvaído do lugar.

Maria Fininha, a verdadeira ladra

Dias depois, é descoberto todo o roubo, feito pela mulher conhecida como Maria Fininha, que tinha furtado todas as joias de um rico cidadão da cidade de Piracuruca conhecido como, Olegário Machado de Brito, a quem serviu como empregada doméstica.

Em seu depoimento, ela confessa que, João Cartomante, era inocente e que tinha repassado as joias para uma outra mulher, conhecida como, Neném Pavão, que recebeu sua bagagem na cidade de Parnaíba, estado do Piauí. Só depois da prisão da cúmplice é que veio a tona toda a história da inocência de João Cartomante.

Maria Fininha também foi violentamente torturada pelos policiais, que ao atearem fogo ao corpo de João Cartomante, também aproveitavam a sessão para torturá-la e queimar grande parte de seu corpo, usando sacos de estopa, embebidos em óleo diesel; motivo pelo qual, ela foi levada para a Santa Casa de Misericórdia em Parnaíba, para tratar das feridas.

Lá, permaneceu sob os cuidados das enfermeiras e da auxiliar de enfermagem, filha de Cocal, Zulmira Cardoso Vieira. Uma das noites, quando se sentia melhor das queimaduras, fez uma corda com os lençóis e pulou de uma das janelas do 2° andar, desaparecendo para sempre.

Uma triste página que ficou para a história

Capa do romance que foi veiculado na época, retratando em detalhes o triste episódio.

Ficou para a história de Cocal, a tragédia; a marca da ignorância; o sangue do inocente derramado como mancha vergonhosa em mais uma das páginas da cidade de Cocal. Hoje, acredita-se que a alma de João Cartomante é milagrosa!


Capela João Cartomante.


Mausoléu construído no interior da capela. Marca o local da tortura.

Muitas pessoas visitam a pequena capela erguida em sua homenagem, onde são depositados objetos como: braços e cabeças de madeira, muletas, além de velas, litros com água e outros objetos que representam a fé do povo cocalense e visitantes, que buscam curas e pagam prováveis “milagres” alcançados pela intercessão do milagreiro.


Objetos deixados na capela em pagamento de promessas alcançadas em intenção de João Cartomante.


Cemitério João Cartomante. Formou se ao lado da capela construída em homenagem ao beato.

Em torno da capela se formou um pequeno cemitério que leva o seu nome. O que muitos não sabem, é que aquele local venerado por muitos é apenas a região onde aqueles policiais levavam João Cartomante para torturá-lo.

Após sua morte, o seu corpo permaneceu em Parnaíba, sendo sepultado no Cemitério dos Campos na Avenida Tabajara. Mas um fato não passou despercebido. Todos os envolvidos no crime, passaram a ter mortes violentas. Esta fase ficou conhecida como a maldição de João Cartomante.


Pequena capela, construída no Cemitério dos Campos (Cemitério do Cruzeiro), localizado na Avenida Tabajara, em Parnaíba.  Local onde foi sepultado o corpo de João Cartomante.

Obs: Os desenhos são do cocalense Adevaldo Carvalho. Em 2018, eu publiquei um romance cujo titulo é: “João Cartomante: o milagreiro” Se alguém desejar adquirir o livro, entre em contato comigo e enviarei o exemplar. (preço a combinar: Livro e postagem) Celular (86)99936-7258 (WhatsApp).