Igreja de N S do Rosário da Frecheira da Lama em Cocal, Norte do Piauí. Sua fachada é composta por porta única com duas janelas à altura do coro, frontão triangular com óculo central não vazado e dois pináculos de baliza, elementos da arquitetura jesuítica dos séculos XVI e XVII, correspondente ao primeiro ciclo de arquitetura destes padres na América Portuguesa. Foto: Paulo Carvalho.
Texto enviado por Diderot Mavignier – Parnaíba, 04/06/2019
A belíssima Igreja de N S do Rosário da Frecheira da Lama e o seu aprazível entorno no município de Cocal, no Norte do Estado do Piauí, aos poucos chegam aos olhares dos piauienses e historiadores. Sem a sua documentação histórica, a provável datação do santuário exposta no seu frontispício causa discursos.
Assim como a investigação criminal no Direito, ou os sinais da patologia de um corpo na Medicina, a ciência História também partilha do método indiciário para análise e conclusão de suas teses. Carlo Ginzburg, historiador italiano, cunhou a expressão paradigma indiciário em um ensaio intitulado Sinais: raízes de um paradigma indiciário publicado em 1979.
Como uma investigação criminal onde o perito analisa a cena de um crime, os sinais deixados na igreja da Lama, embora não defina a sua história na integridade e que remetem a sua construção ao início do século XVII, são bastante significativos. E os sinais são muitos tanto na igreja como em volta desta.
O primeiro sinal – a falta de documentação: se a referida igreja fosse do século XVIII, ou XIX, facilmente encontraríamos sua documentação em arquivos de bispados ou em cartórios públicos; como exemplo a capela de N S de Monserrathe da Parnahiba, com a sua documentação de 1711 conservada no Bispado de São Luís, Maranhão, e hoje, sob a guarda do Arquivo Público do mesmo estado; fontes dos séculos XVIII e XIX, que citam a igreja da Lama são muitas, como certidão de batizado, casamento, ofícios trocados por autoridades na revolta da Balaiada aonde Frecheira e Matões (Pedro II) se tornaram reduto dos revoltosos, lembrando que na época Frecheira e Lama eram dois lugares distintos, hoje Frecheira e Frecheira da Lama respectivamente; em 1901, os Correia da Parnaíba relatam que realizaram uma visita à igreja da Lama participando dos festejos de N S do Rosário, em texto do jornal parnaibano Nortista, quando as terras da igreja pertenciam ao Cel. Ignacio Luiz de Almeida;
O segundo sinal – o seu estilo: segundo o arquiteto Lúcio Costa, a arquitetura jesuítica na América Portuguesa dividi-se em quatro ciclos; os jesuítas tiveram 200 anos de profícua atuação no Brasil colônia, e Costa dividiu o estilo das suas construções em quatro etapas de 50 anos cada; a primeira vai da segunda metade do século XVI ao inìcio do XVII, onde se encaixa a arquitetura de muitas igrejas, entre elas a da Lama; como exemplos: São Miguel Arcanjo na Baía da Traíção –PB; São Lourenço de Tejucupapo em PE; N S de Assunção em Reritiba – ES, esta construída pelo padre Anchieta, entre o final do século XVI e o início do século XVII; no primeiro ciclo, a dificuldade de encontrar mão de obra especializada quanto de encontrar material de construção já beneficiado foram as responsáveis por um estilo arquitetônico simples e sem ornatos; os padres da Companhia de Jesus se valeram dos materiais mais disponíveis nas cercanias da construção;
O terceiro sinal – as ruínas: a cem metros da igreja estão ruínas de paredes de pedra com 1 metro de largura que remetem a uma edificação muito antiga e não pequena, necessitando um estudo arqueológico, podendo ser vestígios de uma casa comunal que servia aos padres; como as construções em um aldeamento eram em geral modestas, e a exceção a essa regra eram basicamente as igrejas, existe a possibilidade dessas ruínas se tratarem de uma primeira igreja destruída pelos batavos calvinistas que exploraram a região quando fundaram a Nova Holanda no Brasil [1630-1654], sendo depois reconstruída mudando de local mas conservando a primeira datação; o padre Cláudio Melo no seu livro A prioridade do Norte no povoamento do Piauí registra a passagem dos holandeses na região de Cocal; já o padre Antônio Vieira ao observar índios calvinistas no aldeamento da Ibiapaba, chamou o lugar de Genebra brasileira em referência a Suíça, terra que recebeu Calvino; Frecheira da Lama fica muito próximo de Viçosa aonde ficava o aldeamento da Ibiapaba;
O quarto sinal – a própria datação: em posição circular e lida por muitos como 1616, ela se encontra no lado esquerdo do frontispício; acompanhando as letras DRNS – Domini Regnum Noster Senior que estão no lado oposto e que segundo a Diocese de Parnaíba significa Do Reino do Nosso Senhor, a data se confirmaria como sendo do século XVII, sem se saber quando foi colocada; o fato do local não ser centro de nenhuma povoação não diz absolutamente nada; alguns aldeamentos no Brasil colonial se tornaram pequenos termos, outros grandes cidades, outros metrópolis como a cidade de São Paulo vinda da capela e colégio de Piratininga, mas outros não vingaram; os mapas do século XVIII mostram que o caminho que ligava São Luís – MA a vila de Viçosa – CE, antigo aldeamento da Ibiapaba, bifurgava em Piracuruca – PI, ambos passando ao largo de Lama deixando-a no mais completo isolamento;
Frontispício da Igreja de N S do Rosário da Frecheira da Lama com datação. Foto: Ailton Ponte.
Inscrição circular com as letras D R N S, no lado direito do frontispício da Igreja de N.S. do Rosário da Frecheira da Lama. As iniciais em latim: Domini Regnum Noster Senior, que equivale à expressão “Do Reino de Nosso Senhor”. Foto: Ailton Ponte.
Nave da Igreja de N S do Rosário da Frecheira da Lama com altar-mor ao fundo e no primeiro plano guarda-corpo do coro. Foto: Ailton Ponte.
Altar-mor de N S do Rosário da Frecheira da Lama. Foto: Antônio Rodrigues Ribeiro.
Sino sem referências ocupando uma das janelas frontais, e o belo crucifixo em bronze no frontão triangular da Igreja de N S do Rosário da Frecheira da Lama. Fotos: Ailton Ponte.
Que venham as pesquisas para que esta página importante do passado do Piauí seja decifrada. A história tem que ser sempre reescrita, pois os meios de produção sempre são moderniazados e novas tecnologias e metódos favorecem o trabalho do historiador, aproximando cada vez o resultado dos trabalhos da verdade histórica, que só existe uma. O sítio histórico de altaneiros buritizeiros e açaizeiros aonde se encontra a igreja de N S do Rosário da Frecheira da Lama tem uma beleza surpreendente. Nos últimos anos, enquanto o Nordeste brasileiro padecia de uma seca impiedosa que já durava anos, na Frecheira da Lama a água pura jorrava de seus olhos-d’água como por um milagre. Reforçamos de que o Piauí precisa o mais urgente possível descobrir esta joia encravada numa das mais espetaculares florestas verdes em pleno sertão nordestino.