Foi de chorar o dia inteiro naquele setembro de 1947 como se estivesse vendo pela segunda vez o corpo do marido Vitorino Gomes de Miranda dentro do caixão e rodeado pelos poucos amigos de serviço na praça comercial de corretores de cera de carnaúba, pelo pessoal da Casa Inglesa e dos Moraes. Mas aquele choro de dona Carmem de Miranda era por causa do piano da família, um Bosendorf alemão muito bonito e a lembrança com que tocou nalgumas vezes com os três meninos seus filhos em ocasiões importantes em Parnaíba.
O piano agora em cima de uma carroça ia direto pra loja de móveis usados do português Manoel Carneiro na rua Conde D’Eu. Dali, quem sabe algum tempo poderia ser comprado por algum novo rico de Parnaíba pra ser peça de decoração de casa ou ser coberto pela poeira e o esquecimento nalgum salão de escola. Em nada iria lembrar os dias de glória de depois de limpo e deixado brilhando seu móvel com óleo de peroba, quando com sua dona tocou pra homens ricos, bispos, políticos, artistas de fora e até no Cine Éden num Dia de Natal.
Dona Carmem Câmara Gomes de Miranda, a velha e empobrecida professora de piano das meninas filhas de industriais e comerciantes ricos de Parnaíba, viúva do cearense e corretor de cera de carnaúba Vitorino Gomes de Miranda, moradora da rua dos Pires Ferreira, no centro, estava inconsolável. Havia algum tempo perdido o marido e os três filhos ganharam o mundo atrás de coisa melhor. André, o mais velho, Pedro o do meio e Paulo, o caçula, o filho querido de Vitorino de Miranda. O pai poliglota, antigo estudante do Liceu do Ceará, falava inglês, francês e italiano antes de vir trabalhar na Casa Inglesa.
Os três filhos de Vitorino e Carmem estudaram na escola da professora Alda Avelino da Cunha, filha do jornalista Alarico da Cunha. Eram os meninos de pouco sair de casa e se misturarem com outros de suas idades. A mãe não gostava deles na rua e juntos com aqueles filhos de gente rica e gente pobre, alguns até devassos e arruaceiros, beberrões. Em casa eles estudavam canto e piano clássico. Quando completou quatorze anos André foi estudar em Fortaleza, terra dos pais e de lá seguiu pra Londres por recomendação dos ingleses de Parnaíba. Era funcionário da embaixada do Brasil.
O segundo filho de seu Vitorino e de dona Carmem de Miranda, o Pedro, foi sempre muito esperto pra ser independente e tão logo foi crescendo o pai arranjou colocação numa empresa de navegação, a Booth Line, e ele acabou ganhando o mundo dentro da marinha mercante. De vez em quando mandava notícias pra mãe e quando podia agora passava em casa. Era feito um beija flor pra chegar e pra sair. Paulo foi um menino bom, o caçula da casa. Nada que dizer dele. Mas acabou sendo funcionário da alfândega por um tempo e depois foi embora pra o Rio de Janeiro.
Um dos orgulhos de dona Carmem Câmara Gomes de Miranda, a agora viúva pobre e que até outro dia era professora de piano, foi um dia ter tocado acompanhada pelos meninos cantando pra o bispo do Maranhão, quando se tratava sobre a criação de um bispado pra Parnaíba. Os três meninos ali perfilados e cantando músicas sacras. Os aplausos dos presentes à cerimônia e aquele nervoso tomando conta dela. Mas agora vendo a carroça se distanciar no rumo da Quarenta dona Carmem assuou o nariz com o pano e a lembrança voltou tratando de procurar a placa com o anúncio da sua agora extinta atividade.
Resolveu fechar a escola de piano porque só havia em três as meninas como alunas. Adiantava ficar se matando, batendo cabeça com aquilo? Ninguém mais tinha dinheiro sobrando na Parnaíba! O que não foi a sua e a vida de sua família?! Vitorino morreu há anos e os meninos, cada um tomou seu rumo. Precisava daquele dinheiro do piano. Ainda havia muita coisa que precisava se desfazer dentro daquela casa, um móvel aqui e outro ali. Depois viria a louça, a prataria. A casa ficou grande pra ela sozinha e já sem saúde. Iria ver doutor Cândido pra semana.