Entrevista com o Dr. Manoel Cerqueira, veiculada na Revista Ateneu nº 1 – 01/2003

Entrevista com o Dr. Manoel Cerqueira (11/03/1916 – 13/01/2012), originalmente veiculada na edição 1 da Revista Ateneu – 01/2003. A conversa se deu em sua Farmácia, no final de 2002 e os entrevistadores foram F. Gerson Meneses e Ailton Cerqueira.

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Manoel Fortes de Cerqueira é uma prova de que a unanimidade existe. Admirado e respeitado pelos seus conterrâneos, aos 86 anos, é uma das grandes referências em honestidade e dedicação à cidade natal. Prova disso foi ter recusado uma proposta de emprego na universidade baiana, em 1943, quando se formou. Grande ativista econômico, rejeitou uma atuação política mais direta. Ele é o idealizador da Festa da Carnaúba, que tinha, originalmente, o propósito de recuperar o valor da cera. Casado com Francisca Deusa de Melo Cerqueira, tem duas filhas: Maria Tereza (médica) e Regina Maria (socióloga).

Qual a grande mudança na sua profissão desde a sua formatura até os dias atuais?
A minha profissão não mudou muita coisa. Apenas naquela época, tinha os serviços de manipulação. As receitas eram preparadas. Hoje, o farmacêutico pega a indicação do remédio e pronto.

O senhor saiu daqui com que idade?
Eu saí daqui no dia 20 de janeiro de 1933. Nasci em 1916, tinha portanto quase 17 anos. Eu fui só; como um cego puxado por uma vara (risos). Naquele tempo era muito difícil; eram trevas e mais nada: o pai era ignorante, a mãe era imbecil, e o filho se saía, saía cego. Saí daqui para Teresina em um caminhão, lá chegamos à noite; o dono do caminhão mandou eu dormir num quartinho lá no fundo da casa, depois me levou para o Colégio Diocesano, onde eu ia estudar. O padre que me recebeu achou que eu tinha que fazer o exame de admissão. Não tinha o primeiro ano primário, não tinha coisa nenhuma, tive que decorar tudo: Geografia, História. Mas estudei, fiz o exame de admissão e passei.

E depois do Diocesano?
Terminei o Diocesano em 1939. Foram cinco anos, depois apanhei aqui a mala, voltei para Teresina e depois para São Luís. Lá cheguei, fui para o cais, fui procurar ver como é que ficava uma passagem num navio, mas todos me disseram que os navios estavam lotados; não tinham uma passagem. Eu ia com o meu outro irmão, o Cícero, que também estava estudando nesse tempo. Insisti muito e arranjei duas passagens. O chefe da viagem disse: “vocês vão avulso dentro, você dorme no chão, faz o que quiser lá dentro; na hora da comida, você tem comida; na hora de banhar, você vai banhar, agora não tem é beliche para você dormir, você dorme no chão e se vira por aí, não reclame nada, se reclamar eu lhe jogo no mar (risos)”. Eu aceitei, tinha que ir. Fomos até a Bahia, cheguei à toa também. Fui para uma pensão e foi muito difícil conseguir a matrícula. Naquele tempo eram dois anos de pré, e sem ninguém. Quando era para fazer o vestibular no outro ano, eu tive uma doença muito grande, quase quarenta dias prostrado com diarréia, quase morria. Eu voltei para cá, não agüentava. Passei aqui um mês em tratamento, melhorei, achei bom não voltar mais para lá pois era muito distante. Fui para o Ceará e fiz o exame vestibular de Farmácia. Passei um ano, mas tinha vontade de voltar para Bahia porque queria fazer um curso de enfermagem, de parto, porque aqui meu irmão estava com dificuldades e não tinha quem ajudasse ele. Lá tinha uns médicos muito meus amigos e eu podia conseguir. Eu me transferi para Bahia, mas disseram: “estudante de Farmácia não pode fazer parto não”. Então, eu me formei em Farmácia.

O que lhe motivou a sair daqui? Qual a sua grande meta quando o senhor saiu daqui para estudar em Teresina?
Nenhuma. Um dia estava sentado na calçada com meu pai, e ele ali conversando. Umas 4 horas da tarde, chegou o Monsenhor Benedito, um padre que morava aqui, cumprimentou meu pai e disse: “Coronel vim lhe fazer um pedido, pro Sr. mandar o Manoel estudar em Teresina. Lá tem o Colégio Diocesano que é um colégio de padre muito bom, ele vai interno para lá, tem toda a garantia, o Sr. manda e não se preocupe.” Aí foi só arrumar a mala e viajar, foi só isso. Nessa época, eu já tinha um irmão que estudava no Rio, mas também ninguém nem se correspondia, ninguém nem sabia de nada. Fui estudar como quem fosse para um passeio para uma coisa, não tinha nem uma idéia que eu fosse ser médico, ser dentista. Eu sempre pensei um pouco em ser advogado, eu tinha muitos livros, gostava muito de ler.

E porque o senhor decidiu cursar Farmácia?
Eu decidi porque o João me pediu. Aqui em Piracuruca, tinhas esses farmacêuticos mas não faziam nada o que ele queria. Ele disse: “Manoel, você se forma em farmácia e eu estou garantido.” Ele era o único médico. Eu tinha sempre esse pensamento de querer ser advogado, mas pelo pedido dele eu fui fazer esse curso, qualquer coisa que ele pedisse eu topava.

E por que o senhor nunca se envolveu diretamente em funções políticas?
Isso foi a maior força daquele tempo, mas a política era muito perigosa. Eu recebi várias propostas, o próprio Costa Furtado foi na minha casa duas ou três vezes e insistiu para eu ser candidato, o próprio Coronel Luiz de Brito, Doca Ribeiro, Geroca. E eu disse que não queria ser candidato não. Tinha um colega de Teresina, que era deputado estadual. Esse rapaz fez tudo para que eu fosse candidato. O meu próprio irmão, João Fortes, insistiu muitas vezes para eu entrar. E eu disse a ele que tinha voltado para ser farmacêutico e trabalhar pela minha terra. Nós construímos um posto de puericultura e uma maternidade. Construí a Associação Comercial que aqui também não existia, criamos também o sindicato rural patronal, construí o prédio ao lado que funcionava com serviço médico e odontológico consegui gabinete consegui tudo do Funrural, tudo funcionou maravilhosamente. E isso foi resultado de uns 20 ou 30 anos de luta.

E qual era o objetivo do Grêmio Recreativo?
O Cassino 16 de Julho era onde a sociedade se reunia. No dia da eleição, houve uma desavença lá e quiseram um presidente. Eu não queria e, para não brigar, saí com meus companheiros para fundar esse Grêmio e continuar a sociedade com o clube. Aí fundamos a sociedade e passou a funcionar, daí para frente.

E a Festa da Carnaúba, qual era o propósito dela?
Esta eu criei com um dos sonhos que eu trouxe para Piracuruca. Eu me criei no mato e via como era que o homem do mato tirava a palha da carnaúba. Eu achava que era, como é ainda, um processo selvagem. Era preciso engrandecer o valor do proprietário, do dono do carnaubal, para ele ter mais estímulo, dar mais valor à cera. Essa história foi muito cumprida, comecei a conversar com todos os proprietários de carnaubais, andando no meu carro, conversando. Depois, procurei falar com as autoridades, com o governador do estado, que naquele tempo era o Chagas Rodrigues, com deputados e expliquei tudo. Queria criar aqui essa festa da carnaúba, para ver se com isso nós levávamos para as autoridades do Rio de Janeiro e também à SUDENE, em Pernambuco. Fui até Fortaleza falar com autoridades lá do Ceará porque eles tinham mais força e a SUDENE aceitou um ofício para fazer um estudo do assunto.

Essa era a parte comercial da festa?
Sim, a outra parte era a social, daqui da cidade. A intenção era criar uma Festa da Carnaúba, fazendo um rodízio. No primeiro ano da festa se coroava uma rainha de Piracuruca, o segundo ano iria acontecer em uma outra cidade: Campo Maior, Barras ou Parnaíba, qualquer uma dessas cidades vizinhas que faziam parte da região. No primeiro ano, nós fizemos a festa aqui, depois Campo Maior não fez, o terceiro era em Parnaíba e também não fez e ficou todo tempo aqui. Em Barras, disseram que não faziam porque já tinha a festa do Babaçu, e continua de lá para cá. Sobre a parte comercial, a SUDENE achou que deveria construir uns grandes galpões, em determinados pontos do Piauí e do Ceará. Aqui no Piauí foram construídos um galpão no Alto Alegre e um em Campo Maior. A minha luta não foi muito pequena não; foi brava, mas eu venci.

E, atualmente, o que a farmácia representa?
A minha farmácia é uma distração, porque se eu fechar a farmácia vou sentar no terraço, ouvir uma pilhéria de uma pessoa ou de outra e vou ficar pensando e a cabeça é uma doença. Aqui não, entra uma pessoa, quer um remédio, eu converso com ele e me distraio. Assim que eu comecei, passava o dia aplicando injeção. Naquele tempo, quem aplicava injeção na veia só era eu; tinha muito antibiótico, muita coisa. Eu ficava aplicando injeção, ou fazendo remédio ou então atendendo o cliente. Eu atendia mais que o médico porque médico só tinha um que era meu irmão. Eu ajudava muito na maternidade; quando tinha um caso de operação, eu era o anestesista. Passei todo o meu tempo nisto. Se naquele tempo, eu tinha um estoque de vinte mil contos de réis, hoje não tenho nada mais. Tenho dois vidrinhos de uma coisa e de outra e dá para nós conversarmos.