No mês que completou 64 anos do assassinato de João Cartomante, ocorrido no dia 03 de setembro de 1956, na cidade de Cocal, estado do Piauí, um grande segredo veio à tona: A verdadeira identidade do “Santo Cocalense”. Após a divulgação de um artigo publicado no Portal Piracuruca, no dia 09/08/2020 com o título: João Cartomante: Uma história de injustiça, sofrimento e morte. No ano de 1956 entre Piracuruca, Cocal e Parnaíba; o tema passou a ter grande repercussão. A publicação do artigo atraiu inúmeros leitores que fascinados com o enredo macabro, passaram a compartilhar nas redes sociais. Entre eles, vários membros da família de João Cartomante, que ao lerem o texto passaram a contatar o autor, e narrarem as reminiscências da família, contribuindo no resgate da verdadeira história da vida do beato. Não cabe neste artigo falar da prisão, tortura e morte, mas desvendar o mistério que envolve, durante décadas, a figura deste personagem. O que se sabe é que o mesmo era um caixeiro viajante, e ao passar pela cidade de Piracuruca foi acompanhado, no trajeto até a cidade de Cocal, por uma senhora de nome Maria Fininha. Ao pararem na estação ferroviária da citada cidade, a mesma foi abordada por policiais e presa. Em seu depoimento culpou o parceiro que viajava ao seu lado de cúmplice no crime. A partir desta data, o mesmo foi detido e passou a ser torturado até a morte. (Link para o artigo no final deste texto).
Durante estas cinco décadas, milhares de pessoas tem dirigido–se, ao local onde ocorreram as torturas para fazerem pedidos ou pagarem promessas “alcançadas” pela interseção da alma milagrosa. Muitos fiéis depositam na pequena capela, construída por romeiros, inúmeros objetos de madeira representando a graça alcançada. Durante os festejos da padroeira da cidade que acontece no mês de agosto, em devoção a N.S. Perpetuo Socorro, muitos fiéis colocam o nome de João Cartomante em agradecimento.
Mausoléu de João Cartomante na cidade de Cocal-PI.
O que a população não sabe é o verdadeiro nome do personagem principal desta trama, e motivo pelo qual nunca ter citado sua verdadeira identidade, quando o mesmo perambulava pela região. Segundo os familiares, o mesmo era descendente legítimo de família cigana e para sobreviver, praticava a arte de adivinhações e leituras de mãos. Mas para passar despercebido, trabalhava com comércio de especiarias e atendia de forma sigilosa o ritual de cartomancia ou leitura da Draba (leitura das mãos).
A documentação mãos antiga indica que a história da vinda dos ciganos para o Brasil iniciou-se em 1574, quando João Torres, sua mulher e seus filhos foram degredados para o Brasil. ( Mota,2004)
Em uma época onde o preconceito e o medo eram latentes nas famílias tradicionais da região, em relação a este tipo de adivinho, era necessário esconder sua verdadeira origem. João Cartomante nunca se apresentava com seu verdadeiro nome, sempre buscando outros pseudônimos como: João Baiano, João Arruda, João Francisco Xavier e por último, João Cartomante. Somente agora veio à tona a sua verdadeira identidade. José Paulo Fernandes é seu verdadeiro nome. Filho de cigano, nascido no sertão de Pernambuco. De uma localidade chamada Coro de Anta. Era um andarilho. Ainda criança foi deixado em uma fazenda canavieira pelo bando de ciganos, a pedido do proprietário, quando acamparam na região.
José Paulo Fernandes, esse é o verdadeiro nome de João Cartomante.
Passou sua infância trabalhando nas mais diferentes funções que exigia a fazenda. Na Casa Grande, conheceu aquela que viria ser sua esposa; uma menina, de aproximadamente uns dez anos de idade, de nome Maria. Ele, com pouco mais de treze anos de idade, apressou-se em contrair núpcias de acordo com a tradição cigana, iniciando a formação de sua família. A esposa recebeu o sobrenome do marido, Maria Paula Fernandes, mas ficaria conhecida como “Maria Cigana”. Ela era filha de uma das moças “solteiras“, que acompanharam o grupo do cangaceiro, Virgulino Ferreira,o Lampião, pelo sertão do Nordeste. Nasceu na região de Caruarú- Pernambuco.
Bando de Lampião
Algumas mulheres do bando de Lampião.
Maria Cigana em dois momentos.
Tiveram os seguintes filhos:
• Francisco Paulo Fernandes “Chico”
• Severino Paulo Fernandes “Biroco”
• José Paulo Fernandes “Xexeu”
• Antônio Paulo Fernandes. ”Falecido aos 14 anos”
• Dorinha Paulo Fernandes ”Caçula”
• Josefa Paulo Fernandes
• Teresinha Paulo Fernandes
• Cícera Paulo Fernandes
• Severina Paulo Fernandes “Nininha”
Alguns filhos de João Cartomante: José Paulo (Xexeu), Severina (Nininha) e Logo abaixo Josefa a filha mais velha, foi ela quem levou a sua mãe Maria Cigana para o circo.
Netos de João Cartomante e Maria Cigana. Sandro (com o filho Simon) e Cícero.
João Cartomante, ao lado da esposa e filhos não suportaram o trabalho na fazenda e logo formaram aliança com seus irmãos de sangue que viviam na cidade de Flores, estado de Pernambuco, microrregião do Pajeú. Após estruturar o bando com tendas, utensílios e animais, resolveram perambular pelo sertão nordestino com sua arte cigana.
Apesar de serem percebidos como desordeiros, terem sido perseguidos e deportados da Europa, os Calon foram lentamente assimilados no Brasil Colônia e conquistaram um espaço de prestígio como comerciantes de escravos (Donovan,1992,pg 43)
Eles não tinham uma religião específica apesar de cultuarem seus deuses. Seguiam o lema ”O céu é meu teto, a Terra é minha pátria, e a liberdade é minha religião”.
João Cartomante, após anos de convivência ao lado de Maria Cigana, em uma de suas viagens, sozinho pelo sertão, resolveu acoitar-se nos braços de outra mulher, na distante cidade de Parnaíba, estado do Piauí. Era uma amante que o atraia a se aventurar sozinho pelo vasto sertão nordestino. As viagens passaram a ser constantes ao interior do citado Estado. A aventura amorosa fez João Cartomante abandonar a esposa, D. Maria Cigana, com seus oito filhos e usava como artimanha de sobrevivência, a sua arte. Perambulava pelas fazendas, benzendo casas, animais e pessoas. Quebrava encantos e trabalhos maléficos.
Já D. Maria, acabrunhada pelo abandono do marido e com muitos filhos para criar, não quis procurar sua família e para sobreviver, continuou no bando. Em pouco tempo, a família crescera. Casou duas filhas. Entre estas, a Josefa, que contraiu matrimônio com um homem de nome Faustino, que não era cigano, mas vivia pelo mundo trabalhando num circo. Certo dia, seu Genro, Faustino, ao instalar o circo próximo a região onde o bando de cigano estava acampado, fez lhe um convite. Largar o grupo e vir trabalhar no seu empreendimento. Fora criando uma afinidade com o palco e sua gente.
No início era muito pobre. Isolavam pequenas ruas, os chamados tapa beco e faziam suas apresentações. Depois evoluíram para uma estrutura maior conhecida como Pano de Roda, tendo um mastro no centro e rodeado de tábuas suspensas em forma de círculo. Dali surgiu a vocação dos filhos para a vida circense. Enquanto isso, João Cartomante continuava sua peregrinação pelo sertão do Piauí. E foi numa destas viagens que caiu em desgraça, perdendo a própria vida.
Família Fernandes distribuindo alegria pelo Brasil através do circo.
Após sua morte, a família soube do ocorrido através de um dos filhos que ao viajar para a região, resolveu certificar-se do fato. Severino Paulo Fernandes era conhecido como Biroco. Era caminhoneiro, e em uma de suas viagens pelo sertão do Piauí, recebeu a missão de visitar a cidade de Cocal, onde seu pai tinha sido assassinado. Chegando ao local, dirigiu se a um pequeno estabelecimento comercial, próximo à praça Matriz, para tomar um café. Ao entrar no estabelecimento, logo foi reconhecido pelo comerciante que lhe interrogou. ___O que você está fazendo aqui, rapaz? Vá embora! Indagou o comerciante. Logo o rapaz retrucou: Desculpe, meu senhor! Mas eu não sou quem você está pensando! O comerciante que olhou firmemente nos olhos e lhe falou em voz ativa. ___Você é a cara de João Cartomante, o homem que a polícia matou. Portanto, ou é filho ou irmão! Essa família que matou seu pai é poderosa. E tem muitos capangas esperando que um de vocês apareçam para vingar a morte do parente. Eles estão preparados e não vão vacilar. Vá embora meu rapaz, enquanto há tempo. E assim, ouvindo o comerciante, rumou para Pernambuco.
Pouco tempo depois, outro filho, José Paulo Fernandes, conhecido como Xexeu, resolveu visitar a casa da segunda esposa de seu pai, na cidade de Parnaíba. Era um jovem mais destemido, armado e corajoso. Estaria preparado para qualquer situação adversa. Chegando a casa da mulher, Xexeu, conheceu a amante de seu pai, e recebeu a triste notícia e o relato minucioso do ocorrido. Seu pai tinha caído em desgraça! Xexeu declarou que nada queria do finado, mas gostaria de levar uma lembrança para sua mãe no estado de Pernambuco. Com o consentimento da mulher, levou consigo apenas três objetos: Uma camisa listrada, o chapéu e um pequeno livro de cordel, amarrada com duas fitas santas de cor rosa e branca, de autoria do poeta Antônio Lucas, que narrava em versos o ocorrido, para entregar a viúva, Maria Cigana.
Consternados com o ocorrido, membros da família passaram a receber notícias de que nunca deveriam voltar a região. E que caso aparecesse algum parente do “criminoso” deveria ser preso imediatamente para evitar prováveis vinganças. D. Maria nunca pode visitar o túmulo do marido. Consolava sua dor lembrando dos bons momentos ao lado do esposo e da música preferida do casal: Era Assum Preto de autoria do cantor Luiz Gonzaga. A melodia da música falava de um pássaro que fora furado os olhos por pura ignorância. “Cantava triste e preso numa gaiola; roubaram seu amor que era a luz dos olhos seus”. A música se tornou um hino de dor e solidão. Maria Cigana ouvia a canção com lágrimas nos olhos. E nos seus últimos dias de vida, antes do suspiro final, pediu que deixasse tocar a música de seu coração. Faleceu no ano de 1991 e foi sepultada na cidade de Ribeira do Pombal, estado da Bahia.
A verdadeira história de João Cartomante foi sepultada por décadas. A população receosa pelos últimos acontecimentos, resolveu não mais comentar o caso. Virou um tabu! Um grande mistério envolveu o assassinato do Cartomante, e sem julgamento, e nem culpados, todos deveriam esquecer o fato e lembrar apenas do homem nas orações. Os nomes dos envolvidos deveriam ser apagados da memória popular. Nenhum comentário deveria ser pronunciado. Mas resistiu silenciosamente na cultura de um povo que nunca conseguiu esquecer da grande barbárie.
O tempo passou e a família Fernandes cresceu! Atualmente, encontramos inúmeros remanescentes da família por várias partes do imenso Brasil. São proprietários de grandes circos do país levando entretenimento e arte aos mais distantes rincões. A família Fernandes é símbolo de espetáculo e magia e considerada uma das maiores expressões artísticas do Brasil na área circense. Mas, uma grande dor acompanha a trajetória de vida da família: A perda de seu genitor “João Cartomante”. O tempo passou, mas o temor e as histórias de geração a geração fizeram com que muitos membros da família evitassem passar por um lugar, no estado do Piauí, conhecido como Cocal da Estação.