Caminhos da Ibiapaba: Uma expedição pela antiga rota dos comboieiros, a bordo de em um Jeep Willys 1969

A expedição “Caminhos da Ibiapaba – na Rota dos Comboieiros” ocorreu em fevereiro de 2024, foi um retorno às origens das antigas rotas comerciais que saiam em comboio a partir da Serra da Ibiapaba. A rota escolhida para esta empreitada de três dias, foi a antiga trilha que liga os Parques Nacionais de Sete Cidades no Piauí e Ubajara no Ceará, passando por várias localidades rurais nos municípios piauienses de Piracuruca, Brasileira e São João da Fronteira e os municípios cearenses de Ibiapina e Ubajara. 

Mapa do percurso ligando os dois Parques Nacionais, trecho percorrido de oeste a leste, com distância de aproximadamente 140 km.

OS COMBOIEIROS

Os comboios a partir da Serra da Ibiapaba, movimentaram o comércio entre Ceará e Piauí, indo até o Maranhão. Não se tem uma data da época em que começou esse movimento, no entanto, presume-se que ele ocorra desde o início de ocupação das terras da região da Serra da Ibiapaba, quando os criadores cearenses vinham para o Piauí com o seu rebanho em busca de água. O movimento foi arrefecendo a partir de meados dos anos de 1970, com a intensificação do transporte motorizado, mesmo assim, ainda hoje existem comboios em situações pontuais na região da serra.

Eram vários produtos comercializados, destaque para: café de caroço, fumo de corda, rapadura, cachaça e tecido. Esses produtos, os comboieiros traziam da Serra da Ibiapaba para vender no Piauí e no Maranhão. Ao voltar, levavam para a Serra da Ibiapaba: cera de abelha, cera de carnaúba, carne seca e couro de animal. Na época, a pele mais valiosa era a de gato maracajá. As viagens, as vezes demoravam um mês, entre a ida e a vinda.

Basicamente um comboio era composto por um chefe, que vinha na frente montado em um jumento. Em seguida vinham os jumentos carregados de mercadorias e eram tocados por homens que vinham a pé, eram os chamados arrieiros. Eram os arrieiros os responsáveis pelo manuseio (arreio) das mercadorias e preparação dos alimentos nos pontos de parada. Cabia também ao arrieiro, o controle do comboio, para evitar que os animais se desgarrassem no mato, para isso, eles usavam um chicote, denominado de macaca.

Os pontos de parada e comercialização das mercadorias, eram as casas de fazenda, essas fazendas normalmente acompanhavam a margem do Rio Arabê (Rio Piracuruca) e tinham locais próprios para o acolhimento do comboio, lugar para as membros do comboio e animais se alimentarem e para o pernoite.

Os comboieiros transportando suas mercadorias pelo sertão. Fonte da imagem: https://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/festa-dos-comboieiros-ocorre-neste-sabado.ghtml

Os comboieiros deixaram um importante legado em toda à nossa região, influenciando nos contextos sociais, econômicos e culturais. A seguir, alguns testemunhos:

Para o servidor público Apolinário Feitoza, residente em Teresina – Piauí. Disse ele:

“…São João da Fronteira serviu como ponto de apoio aos comboieiros que transitavam vindo e indo para a Serra da Ibiapaba…inclusive o meu avô materno Chico Lourenço, que era comboieiro natural de Ibiapina, ele fazia a rota até Batalha – Piauí…em uma dessas viagens ele conheceu minha avó Maria Amélia de Melo, da família dos Melo de Batalha, casaram e constituíram família”.

Para o músico, pesquisador e professor do IFPI, Vagner Ribeiro. Disse ele:

“…meu bisavô Joaquim Avelino Ibiapina era comboieiro, chegou a ter a proeza de fazer comboios de seis meses, ele ia da Serra da Ibiapaba até Castanhal no Pará”.

Para George Coelho, neto de Raimundo Inácio de Aguiar, morador de Fortaleza – Ceará. Disse ele:

“…meu avô Raimundo Inácio de Aguiar, comboiava cargas no lombo de jumentos nas vizinhanças entre Ceará e Piauí. Vindo do lado da Serra da Ibiapaba, tinha uma Fazenda denominada Pedra Branca, onde plantava arroz que trazia subindo a serra, ora deixando parte em Ibiapina, ora levando para sua Fazenda Belmonte, no Piauí. Dizem que chegava a subir a serra numa escada íngreme de madeira com uma saca de arroz nas costas…Em Ibiapina, ainda no Ceará, fazia rapaduras em engenhos com engrenagens movidas a boi; rapaduras que levava na viagem pro Belmonte. Ainda pro Belmonte, vinha o cal utilizado na construção das casas e currais, trazido de Frecheirinha, no Ceará. Do Belmonte, vinha pro Ceará o gado a ser abatido e, em épocas de seca, os rebanhos eram levados para escapar na Fazenda Bom Gosto, vizinha ao hoje Parque das Sete Cidades. A sede desta Fazenda era a conhecida “Casa dos Escravos”. O capitão Raimundo Inácio de Aguiar, título dado a ele gratuitamente pelo povaréu do lugar, era uma espécie de empreendedor/comerciante daqueles tempos primitivos da civilização do couro”.

Em tempo: as fazendas Bom Gosto e Belmonte, supracitadas por George Coelho, estão na rota que passamos e serão citadas novamente abaixo.

IDENTIFICAÇÃO DA TRILHA

A trilha tem a marca com uma pegada estilizada que faz uma alusão ao primata Bugio (Macaco Guariba), a mesma está inserida na rede brasileira de trilhas de longo curso do Ministério do Meio Ambiente.

Em tempo: O objetivo principal da expedição foi a coleta de informações para a elaboração de um documentário em vídeo sobre os Comboieiros da Ibiapaba, o mesmo está disponível em três episódios no canal CheckinAventura e os links estão logo no final desta matéria.

Os participantes da expedição: F Gerson Meneses e Osiel Monteiro (Curiólogo). Início de gravação do documentário, ainda no Parna Sete Cidades.

A expedição foi dividida em três partes (três dias):
• 1ª parte: saindo do Parna Sete Cidade até o povoado Saco dos Polidoros, no município de Brasileira – Piauí, aproximadamente 44 km;
• 2ª parte: saindo de Saco dos Polidoros até a localidade Pavuna, no município de São João da Fronteira – Piauí, aproximadamente 42 km;
• 3ª parte: finalmente, a partir da localidade Pavuna, entramos em área de litígio entre Piauí e Ceará até chegarmos no Parna de Ubajara, aproximadamente 60 km.

Ao longo do percurso, foram se acumulando histórias, conhecimentos e saberes, a partir da interação com diversos personagens entrevistados que vivenciaram a época do comboio. A seguir, um pouco do material produzido e apresentado no documentário, as fotos são de F Gerson Meneses e Osiel Monteiro (Curiólogo):

1ª Parte: Parna Sete Cidades -> Saco dos Polidoros:
Planejamento do percurso, ainda no Parna Sete Cidades.
Trilhando pelo Parna Sete Cidades.
Trilhando pelo Parna Sete Cidades.
Tinha um quelônio no meio do caminho.
Saindo do Parna Sete Cidades.
Logo após a região onde hoje é o Parque Nacional de Sete Cidades, um dos principais pontos de parada era esse aqui, um casarão na localidade Bom Gosto conhecida como “Casa Velha dos Escravos”. Atualmente esse patrimônio histórico está em ruínas e clama por cuidados. Obs: Logo abaixo desta matéria tem um link com mais informações sobre a “Casa Velha dos Escravos”.
Seguindo adiante, rumo à localidade Bom Jardim.
Chegando na localidade Bom Jardim.
Crianças se divertindo no velho Jeep…
…e lendo exemplares da Revista Ateneu, que foi distribuída para crianças nas comunidades.
Entrevista com a Sra. Francisca de 77 anos. Disse ela “…os comboieiros passavam no lugar onde eu morava, que se chamava Cascudo, meu pai comprava muita coisa deles…lá em casa eles se arranchavam, comiam e dormiam…”.
Logo após as localidades Bom Jardim e Piçarra, uma passagem pela antiga ponte sobre o Rio Piracuruca. Ponte paralela à BR 222.
Concluindo a primeira etapa da expedição, chegamos ao povoado Saco dos Polidoros, lá tivemos o apoio e a receptividade da minha prima Conceição e sua família: Totó, Kelly e Mazé. Lá também tivemos o primeiro pernoite.
No povoado Saco dos Polidoros, o garoto Bento, posando na frente da Capela de São João Batista, datada de 1948. Esta capela foi construída a partir de uma promessa, pela matriarca dos Polidoro de Brito, dona Maria Rosa Castelo Branco ao obter a cura do seu filho João. Dona Maria Rosa é trisavó de Bento.
Aqui uma conversa com Antonio De Brito Neto (Totó). O Saco também foi passagem dos comboeiros…Totó me falou um pouco da sua vivência com esses personagens, que em décadas passadas, movimentaram a economia da região, trazendo produtos da Ibiapaba em lombos de jumentos e comercializando nas localidades, seguindo o curso do Rio Arabê (Rio Piracuruca). Disse ele: “…eles traziam até chinelos…quando eu ouvia o estralo da macaca, já sabia que eles estavam chegando…além do chefe do comboio, tinha também os arrieiros…”
O Saco dos Polidoros é um lugar de uma fauna exuberante, aqui um flagrante do namoro de um casal de Rolinha Sangue de Boi.
A lua dando sinais no Saco dos Polidoros…
…em seguida o sol nasce. É hora de continuarmos a trilha. Obs: Logo abaixo desta matéria tem um link com mais informações sobre o Povoado Saco dos Polidoros.

2ª Parte: Saco dos Polidoros -> Pavuna:
Seguindo para a próxima parada, fazenda Belmonte.
Paisagem do sertão piauiense.
Chegando na Fazenda Belmonte.
O casarão mor da Fazenda Belmonte se destaca no meio do sertão piauiense, fica próximo ao pé da Serra da Ibiapaba, entre os municípios de Brasileira e São João da Fronteira. Foi construído na década de 1940 por Raimundo Inácio de Aguiar (N. 1880 – F. 24/09/1964).
Eu e o esperto garoto Levi, de 6 anos, estamos na frente do imponente casarão vertical da Fazenda Belmonte.
Açude da Fazenda Belmonte, construído pelo patriarca Raimundo Inácio de Aguiar. Obs: Logo abaixo desta matéria tem um link com mais informações sobre a Fazenda Belmonte.
Seguindo ruma à localidade Pavuna, passagem pela ponte do Rio Jenipapo (Rio Pequeno), afluente do Rio Piracuruca (Rio Grande).
Já na zona rural do município de São João da Fronteira, mais distribuições de exemplares da Revista Ateneu.
Na nossa passagem por Malhada das Pedras, conhecemos o Sr. Agnaldo e o seu filho Gustavo, que nos levaram a um lugar chamado de Pé de Ema….
…o local fica na margem do Riacho do Pintado e na verdade, o que os moradores chamam de “Pé de Ema”, as pegadas talhadas na margem do riacho, são gravuras rupestres. Temos então um sítio arqueológico na rota dos comboieiros. Obs: Logo abaixo desta matéria tem um link com mais informações sobre o Sítio Arqueológico dos “Pés de Ema”.
Chegando na localidade Pavuna, o nosso ponto de apoio e pernoite nessa segunda parte.
Margem do Rio Jaburú, afluente do Rio Jenipapo e subafluente do Rio Piracuruca.
Em Pavuna, tivemos a receptividade do amigo Amorim (segundo, a partir da esquerda). O mesmo nos deu alimento, nos abrigou e promoveu uma roda de conversas na sua chácara, reunindo alguns ex-comboieiros e outros que participaram ativamente da época do comboio. Os demais na foto são, pela ordem: Sr. José Lopes – Localidade Pavuna, Sr. Raimundo Chagas – Localidade Gameleira, Sr. Genivaldo – Localidade Pitombeira e por último, Sr. Antônio Ferreira – Localidade Pavuna. Nas partes 2 e 3 do documentário em vídeo tem os depoimentos.

3ª Parte: Pavuna -> Parna Ubajara:
Essa parte da expedição compreendeu uma imensa área de litígio entre o Piauí e o Ceará, área sem estrutura e sem estrada. Pela falta de acesso, tivemos que cortar caminho e trocar de veículo.
Na localidade Oficina, entrevistamos o Sr. Francisco Marques (Quinzin). Disse ele: “…os comboieiros se arranchavam na localidade Monte, que era o lugar onde eu morava…lembro bem que eles vendiam até tecido no metro…”.
No caminho a seguir, encontramos este casarão na margem da estrada, na fachada está escrito “Vila Sãosinha”. Infelizmente este monumento histórico está abandonado e sucumbindo ao sabor do tempo. A casa com certeza foi parada dos comboieiros da Ibiapaba.
Mais alguns quilômetros à frente e chegamos ao distrito de Santo Antônio da Pindoba, que hoje é administrado pelo município de Ibiapina – Ceará.
Igreja de Santo Antonio, fica na Praça Pe. Antônio Cláudio de Oliveira, em Santo Antonio da Pindoba.
Em Pindoba, entrevistamos a Sr. Francisca de Sousa Alves Barbosa (Dona Nêga). Disse ela: “…lembro de um comboieiro chamado Luiz Alves, que passava vendendo tecido em um caixote que levava nas costas, esse não andava de jumento…mas lembro também dos que passavam em jumentos, como o Sr. Ernesto, que passava por aqui e seguia rumo ao Piauí…”. Obs: Logo abaixo desta matéria tem um link com mais informações sobre o Distrito de Santo Antônio da Pindoba.
Seguindo adiante, passamos por este outro casarão de arquitetura antiga, também parece fechado.
Na Rota dos Comboieiros, passamos pelo cemitério do Zé da Luz. Este local a caminho de Ibiapina no Ceará, marca o local de um bárbaro assassinato que ocorreu por volta do ano de 1868. O comboieiro Zé da Luz foi confundido com um ladrão de animais, foi perseguido, brutalmente judiado e morto. Virou mártir e tem vários devotos em toda a região, que fazem promessas pedindo bençãos à alma do Zé da Luz.
Tião, morador local, nos conta a história da morte do Zé da Luz. Disse ele: “…encontraram ele com os animais e acharam que ele era o ladrão, judiaram muito e mataram ele neste lugar, que depois se transformou em um cemitério e lugar onde vem gente pagar promessa…muita gente daqui e de fora vem pagar promessa para o Zé da Luz…minha irmã foi curada da perna, minha mãe fez uma promessa aqui e ela ficou boa…”.
No local encontramos ex-votos: pernas, braços, pés, cabeças e até corpos de crianças, objetos feitos de madeira ou de gesso. São depositados na cova de Zé da Luz, após serem alcançadas as graças.
A coruja buraqueira, sob o sereno da tarde, descansa sobre o cruzeiro de um antigo túmulo no cemitério do Zé da Luz. Obs: Logo abaixo desta matéria tem um link com mais informações sobre o comboieiro Zé da Luz.
Antes de chegar ao nosso destino, a rota ainda passa pela Cachoeira do Boi Morto, já no município de Ubajara – Ceará.
Chegamos então aos altiplanos da Ibiapaba.
Já nas proximidades do Parna de Ubajara, entrevistamos o Sr. Gomez, que ainda hoje produz o mesmo tipo de café que era transportado pelos comboieiros, o Café de Caroço. Disse ele: “…o café em caroço era pisado em um pilão…os comboieiros quando vinham do Piauí traziam também carne seca, de bode e de gado…”.
Uma das Cachoeiras existentes no Parna de Ubajara.
Bondinho que leva à Gruta de Ubajara.
Dentro da Gruta de Ubajara.
Chegamos então ao nosso destino, o Parna de Ubajara.

Valeu a pena: foram muitos dias de preparo, planejamento e também muitas despesas para a realização desta viagem. Muitos quilômetros percorridos, muitas pessoas entrevistadas, muitos depoimentos, muitos perrengues também…no geral, muito esforço. Mas, o que tive de retorno em aprendizado, superou todas as minhas expectativas, encontrei pessoas valorosas pelo caminho e trouxe na bagagem um pouquinho do saber de cada uma. Até a próxima…


Documentário em vídeo:

 

 


Links sugeridos:

A misteriosa e lendária “Casa velha dos escravos do Bom Gosto”, próximo ao Parque de Sete Cidades

Memorial Polidoro de Brito, o primeiro museu rural do Piauí está no povoado Saco dos Polidórios

A Fazenda Belmonte resiste ao tempo e ainda esbanja a sua imponência entre os municípios de Brasileira e São João da Fronteira no Piauí

São João da Fronteira – PI – Gravuras “Pés de Ema”

Santo Antônio da Pindoba, um importante distrito em área de litígio entre o PI e o CE que fica na antiga rota dos comboieiros

O comboieiro Zé da Luz foi cruelmente morto por engano em 1868, virou mártir e hoje é considerado um “santo” na Ibiapaba