Um pitoresco lugar na Rua José Narciso, centro de Parnaíba-PI, próximo à praça Santo Antônio, abriga um frondoso e centenário cajueiro. Passagem constante de transeuntes que volta e meia vão ao centro resolver alguma coisa; essa árvore seria mais uma como tantas outras que ainda resistem à urbanização, isso se não fosse o valor histórico que ela tem. O diferente desse cajueiro é que ele foi plantado por Humberto de Campos, e ainda mais, foi eternizado em um dos seus mais famosos contos: “Um amigo de infância”, disposto no final desse texto.
Humberto de Campos
De acordo com a sua biografia (1):
Humberto de Campos Veras Filho de Joaquim Gomes Veras e Anna Theodolina de Campos Veras, jornalista, poeta, contista, cronista, humorista, crítico literário, memorista, político e biógrafo, nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos (MA), no dia 25 de outubro de 1886. Chegou à Parnaíba no ano de 1894, aos 08 anos de idade, onde passou a residir numa casa ao lado da que fora construída por sua mãe em 1896, para onde se mudou dois anos depois, na antiga Rua Pará, logradouro público que hoje tem o seu nome. Foi nesta data e no quintal desta casa que plantou o memorável cajueiro. Eleito em 30 de outubro de 1919, com 33 anos, para a cadeira de nº 20, que tem Joaquim Manoel de Macedo como patrono, sendo o mais novo acadêmico a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Sua primeira criação poética “Poeira…”, foi editada em Porto – Portugal, no ano de 1911. Seguiram-se várias obras em prosa, de sucesso nacional, num total de mais de quarenta. Seu livro mais importante “Memórias”, tem grande e considerável parte – verdadeiro manancial de poesia em prosa – sobre a cidade de Parnaíba. Na sua época foi o cronista mais popular e lido do Brasil, com publicações nos jornais e revistas de maior circulação no país. Casado com Catharina Vergolino de Campos, com quem teve três filhos: Maria de Lourdes, Henrique e Humberto Filho. Faleceu no Rio de Janeiro, em 05 de dezembro de 1934, aos 48 anos de idade. |
Dada à sua importância, em meados do século passado o local recebeu uma atenção por parte do poder público municipal da cidade de Parnaíba, o cajueiro ganhou a companhia de um jardim e uma simpática infraestrutura foi construída. A partir de então, o local ainda teve alguns melhoramentos e ficou conhecido como “Jardim e Cajueiro Humberto de Campos”. É hoje um dos pontos turísticos de Parnaíba, e é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o IPHAN (3).
Parte externa no jardim, na Rua José Narciso
Busto colocado em 1941 na parede do jardim. Uma homenagem da cidade de Parnaíba a Humberto de Campos
Visões da parte interna do “Jardim e Cajueiro Humberto de Campos”
Nas paredes internas do jardim, são descritos trechos do conto “Um amigo de infância”
Sr. Raimundo Neto, guardião e cuidador do “Jardim e Cajueiro Humberto de Campos”
“A casa em que o poeta morou, na rua que tem o seu nome, no Centro de Parnaíba, ainda mantém as caraterísticas da época. Embora não seja uma casa de esquina, é avarandada e possui enormes janelas de madeira. O quintal, pequeno, foi separado do cajueiro por um muro construído pela prefeitura municipal, que adquiriu o acervo de Humberto de Campos” (4).
Casa onde morou Humberto de Campos, em destaque uma placa fixada ao lado da porta principal, com a datação de 1894, ano em que Humberto chegou em Parnaíba
Um memorial com objetos, fotos e algumas publicações de Humberto de Campos, que antes estavam na Academia Brasileira de Letras, hoje estão expostos em uma sala na sede da Academia Parnaibana de Letras (APL), à disposição dos visitantes.
Sede da Academia Parnaibana de Letras (APAL). Localizada na Rua Alcenor Candeira, 680, no centro de Parnaíba
Placa em frente ao Memorial Humberto de Campos na APAL
Objetos, publicações e fotos expostas no Memorial Humberto de Campos
UM AMIGO DE INFÂNCIA (2) No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas unidas e avermelhadas, as quais eram como duas jóias flexíveis que tentassem fugir do seu cofre. – Mamãe, olhe o que eu achei! – gritei, contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o mostrengo que ainda sonhava com o sol e com a vida. – Planta, meu filho… Vai plantar… Planta no fundo do quintal, longe da cerca… Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou. O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele já me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo, experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem que embalasse nos braços o seu irmãos de leite. Até que, um dia, seguro da sua rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio e, todas as tardes, lhe subo ao galho mais empinado, onde, com o braço esquerdo cingindo o caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da “Chegança”, que é, por esse tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba: Assobe, assobe, gajeiro, Mão direita aberta sobre os olhos, como quem devassa o horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintas vizinhos, as vacas do curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio Santeiro, eu próprio respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a, como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas estacas das cercas velhas, enfeitadas de melão-são-caetano: Alvíssaras meu capitão, A memória fresca, e límpida, reproduz, uma a uma, fielmente, todas as passagens épicas, todas as canções melancólicas e singelas da velha lenda marítima com que o majestoso mulato Benedito Guariba, uma vez por ano, à frente dos seus caboclos improvisados em marujos portugueses, alvoroça as ruas arenosas de Parnaíba. O vento forte, vindo das bandas da Amarração, dá-me a impressão de brisa do oceano largo. O meu camisão branco, de menino da roça, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O cajueiro novo, oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido rolando diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de Espanha, e areias de Portugal. Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona Páscoa berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais saudade. Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o estribilho “ípsilon”, marcando sonoramente as seis horas. Os do sr. Antonio do Monte, ao longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o alto, olhando o milho de ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra, desço tristemente do folhudo mastro do meu cajueiro, sonhando com o oceano alto, invejando a vida tormentosa dos marinheiros perdidos, que não tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, à luz de um lampião de querosene, a lição do dia seguinte… Aos treze anos da minha idade, e três da sua, separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa corre-lhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio. – Adeus, meu cajueiro! Até à volta! Ele não diz nada, e eu me vou embora. Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em S. Luís, homem-menino, lutando pela vida, erijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: “Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças…” Há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em que o Oceano, o Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado dos três é a Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras e costas, ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita, esgrime com os galhos furiosos, e não pode fugir, nem viajar… Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua idéia. E choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz? Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco, mas ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e frutos de ouro pálido para as pipiras cinzentas. É um cajueiro moço, e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal. Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste: -Adeus, meu cajueiro! O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a fragilidade do capitão Guliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo. – Meu cajueiro, aqui estou! Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem; ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia, modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos abraçam coqueiros, afogam laranjeiras que noivam, ou ultrapassam a cerca e vão dar sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem dono… Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco… Ao perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em baixo, a vasa e a podridão! – Adeus, meu cajueiro! (Memórias, 1933.) |
——-
Referências consultadas:
1 – Memorial Humberto de Campos – Academia Parnaibana de Letras
2 – http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm%3Fsid%3D221/biografia
3 – https://parnaiba.pi.gov.br/phb/prefeito-mao-santa-determina-abertura-cajueiro-humberto-de-campos-para-visitacoes/
4 – http://www.jornaldaparnaiba.com/2020/02/o-cajueiro-do-poeta-humberto-de-campos.html