Foi chegar naquela manhã pra mais um dia de trabalho e encontrar a rua toda cheia de buracos e os trabalhadores jogando a areia na calçada de sua sapataria na rua Duque de Caxias. Seu Mário saiu apressado pela calçada, entrou na rua do Rosário em direção da praça da igreja e em lá chegando viu aquele desmantelo todo. Desde a madrugada que a Parnaíba estava de cabeça pra baixo com as ruas sendo calçadas por ordem do prefeito Ademar Neves.
Puxou conversa com um sujeito, que pelo visto seria o mestre ali próximo e ouviu dele que a Parnaíba estava em obras. O dono da Sapataria Estrela voltou de cabeça baixa, segurando o molhe de chaves e pelo caminho curto foi procurando outros comerciantes pra somar as queixas com aquela anarquia que estava nas portas de seus estabelecimentos. Veio chegando mais gente e mais gente e o ajudante de balcão Pompílio, dito Carvalhinho, e se juntou aos que ficaram admirados com tudo aquilo. Conversa pra um dia inteiro!
Era um dia perdido pra seu estabelecimento e os de seus colegas na região do Hotel Carneiro e o Hotel Parnaíba, lugares onde se hospedavam os caixeiros viajantes vindo de Tutóia e São Luís no Maranhão e isso fora os homens de dinheiro no bolso de Parnaíba, industriais, corretores de cera de carnaúba, de jornalistas, médicos e advogados que viajavam pra outros centros e andavam ali pela mercearia do Bembém e nos cafés da praça da matriz com seus sapatos lustrados e de boa qualidade.
Mário de Lima Passos, o dono da sapataria mais procurada da Duque de Caxias em Parnaíba naquele ano de 1934, herdou o negócio do pai, Honório de Lima Passos e vivia tocando a sapataria na esperança de um dia mais lá pra frente entregar pra o filho único, Edgar, menino, quase rapazinho de seus quinze anos, mas que pouco mostrava interesse pelo comércio. Vivia debaixo da saia da mãe, dona Olívia, que fazia todos os gostos dele e escondendo suas peraltices.
O dono da sapataria queria porque queria que o filho se formasse contabilista, mas o menino, assim feito outros filhos de endinheirados da Parnaíba, não queria nada na vida. Vivia enfurnado no quarto escrevendo e desenhando esquisitices e a conversa era de que mais tarde iria levar pra seu Bembém, comerciante influente e que publicava uma revista, o Almanaque da Parnaíba. Vez em quando Edgar passava na loja, mas pra varrer as moedas das gavetas do apurado e depois seguia pra o cinema dos carcamanos.
O dono da sapataria que calçava os ricos, os caixeiros, os políticos, o prefeito Ademar Neves e até os pedantes e as mulheres elegantes, vivia zangado e queixoso da vida do filho. E de tanto viver gastando o que tirava da gaveta da loja o menino acabou dando pra beber e a fumar. Arranjou uma namorada e era de passar o dia inteiro na porta da casa dela prometendo mundos e fundos. Dona Olívia já nem metia a cara na porta da rua, de tanta vergonha.
Mas agora o dono da sapataria estava contrariado com Ademar Neves, a quem dava os piores nomes feios. Também pudera! Do dia pra noite a rua da sapataria ficou toda revirada! Duque de Caxias, 28 de Julho, rua do Miranda, travessa da Glória, rua do Braga, a Souza Martins, Riachuelo, Pires Ferreira, praça Jonas Correia e Marquês do Herval. E naquela revolta de quem estava sendo contrariado e prejudicado foi pra porta da loja tentando montar uma vingança.
Lá na ponta da rua Duque de Caxias apareceu o negro Simão Pedro, velho mestre de pedreiro e metido a letrado, a jornalista político. Vinha das bandas do porto. Quando não estava nalguma obra em cima de andaimes, dando ordens, era de passar na mercearia de seu Bembém pra tomar uma aguardente, um conhaque e ler algum jornal deixado à revelia. Gostava de falar mal de Getúlio Vargas e de birra dos intendentes passados e agora do prefeito Ademar Neves, a quem atribuía de ser gastador do dinheiro da prefeitura com coisas desnecessárias. Coisa sem fundamento.
Era naquela mercearia por onde passava toda a gente mais importante da Parnaíba e ele queria ser parte dela. Em lá instalado ia à procura de alguma coisa pra ler depois de sentado num tamborete perto da entrada da porta. Homem de boa estatura, negro retinto, rosto redondo, mais de sessenta anos, uns cacos de dentes na boca, os caroços dos olhos amarelos, sempre cheirando a aguardente e a fumo, vestia terno já encardido na gola de linho branco, gravata preta e andava calçado de tamancos.
Simão Pedro tinha as palmas das mãos grossas e encardidas, mas escondia uma coisa, uma arte nunca ali vista e se vista pouco entendida e acreditada na Parnaíba. Escrevia textos e versos na língua de Shakespeare. Seu pai, um irmão e seus tios trabalharam a vida inteira no porto Salgado pra o pessoal da Casa Inglesa e aprenderam a falar e a escrever alguma coisa. Mário vendo o negro mestre de pedreiro se adiantando na sua direção foi logo contando o ocorrido. Ele ficou ali ouvindo as queixas do comerciante e na cabeça formando alguma tirada pra por certo escrever depois.
Acertaram que Simão Pedro sabendo falar e escrever em inglês e sendo jornalista e metido no meio daquele pessoal bem que poderia escrever um artigo reclamando e falando dos prejuízos que as obras da prefeitura estavam causando aos comerciantes da região do centro de Parnaíba. Em troca ganharia um par de sapatos, novinho, da melhor marca e que muita haveria de servir pra quando fosse à missa na igreja dos pretos. Negócio fechado. O par de sapatos já saiu dentro de uma caixa e debaixo do braço do negro.
O mestre de pedreiro, como fazia de costume, foi sair da sapataria Estrela e mais um pouco estava dentro da mercearia de seu Bembém tomando seu conhaque. De lá foi ao Mercado Central e já bem pesado pela bebida tomou o rumo dos botecos imundos dos Tucuns. E foi lá que perdeu ou que lhe roubaram a caixa de sapatos. Dias passados e sem ter como dar satisfação pelo que havia tratado, desapareceu. Passou um mês, dois e três. Simão Pedro um belo dia foi visto calçado com os inseparáveis tamancos de cajueiro. Não teve diabo que fizesse se acostumar com aquela coisa nos pés.