Recortes históricos sobre o centenário da Estação Ferroviária de Piracuruca

Neste dia 19 de novembro de 2023, o prédio da Estação Ferroviária de Piracuruca está completando 100 anos da sua inauguração. É o centenário de um símbolo que influenciou significativamente os destinos da cidade, pois, a partir do funcionamento da ferrovia, a passagem do trem proporcionou mudanças nos aspectos sociais, culturais e principalmente no aspecto econômico.

A ferrovia funcionou por cerca de 70 anos, até ser totalmente desativada no início dos anos 1990. A partir disso, o prédio da Estação, assim como todo o patrimônio ferroviário de Piracuruca ficou em desuso e abandonado. Restou o velho prédio da Estação, que após ser restaurado pelo IPHAN – pois é um bem valorado – passou a ser administrado pela APAE, que usufrui e cuida muito bem do prédio, mantendo ali atividades sócio educativas e culturais.

Para rememorar o centenário da Estação, no dia 08 de julho de 2023 eu ministrei uma palestra no histórico prédio a convite da APAE, contando a história da ferrovia em Piracuruca. O evento contou com a presença de muitas pessoas, alguns da plateia vivenciaram o cotidiano da passagem do trem e me senti feliz em ver muitos filhos e netos de ferroviários. Logo abaixo colocarei alguns dos tópicos que foram abordados na palestra “Recortes históricos do centenário da Estação Ferroviária de Piracuruca”.

Registros do dia 08 de julho de 2023, dia que foi rememorado o centenário da Estação Ferroviária de Piracuruca. Fonte: F5 Piauí

Prelúdios:
Nas primeiras décadas do século passado, Piracuruca dava sinais de evolução econômica, passando a ser um importante centro comercial. De acordo com (1):

Em 1914 a cidade de Piracuruca tinha se transformado em um centro comercial exportador de couros, cera de carnaúba, farinha, rapadura e algodão. O comércio repassava artigos industriais e tecidos vindos de São Luis do Maranhão…Funcionavam nos arredores próximos da cidade as moagens, as “borreiras” e os engenhos-bolandeiras de descaroçamento de algodão.

Porém, existia um sério entrave que dificultava muito o escoamento da produção para os mercados consumidores, principalmente o litoral, de onde os produtos eram exportados através de navios. Quanto a isso, ainda segundo (1): “Nos anos 15 e 16, a cidade experimentou o sucesso das exportações de cera de carnaúba rumo ao Porto de Parnaíba, descobrindo o grande entrave da inexistência de meios de comunicação e transporte, como causas comprometedoras do seu futuro”.

Em seu livro escrito em 1922, Anísio Brito destacou: “…atualmente, o transporte é ainda primitivo, feito em animais, apesar das grandes distâncias a percorrer” (2).

Por isso, todos almejavam escoar os produtos, principalmente os exportáveis, por uma via de acesso mais fácil, mais rápida e mais barata (3).

O trem já apitava no litoral:
O fato de o trem já circular pelo litoral desde meados da década de 1910, dava esperança aos piracuruquenses de que um dia a Estrada de Ferro Central do Piauí pudesse avançar pelo sertão piauiense, até chegar em Piracuruca. Sobre isso, em (4) é dito que:

O trem já apitava no litoral do Piauí mesmo antes de 1920, porém foi a partir de 1922, que a Estrada de Ferro Central do Piauí – EFCP passou a se estender. Saindo de Parnaíba, os trilhos avançaram até a cidade de Piracuruca, passando por vários povoados, dentre eles: Boa Vista, Marruás, Bom Princípio, Frecheiras, Cocal e Deserto. Esta foi a ampliação até 1923. Em algumas paradas foram construídas estações ou uma pequena plataforma, caixa d`água e poço para abastecer as locomotivas.

Em tempo 01: logo no final dessa matéria, tem o link para um acervo fotográfico, com imagens de antigas locomotivas que circularam pelo sertão do Piauí.

Registro do desembarque de locomotivas no final da década de 1910, no Porto de Amarração (4).
A locomotiva 29, exposta no centro de Parnaíba-PI, foi fabricada nos Estados Unidos e percorreu o solo piauiense do Portinho ao Cacimbão, desde a sua inauguração em outubro de 1916.

Baluartes:
Para que a linha férrea chegasse à Piracuruca, alguns personagens foram muito importantes. “O sonho dos piauienses era a criação de uma linha férrea que ligasse Parnaíba a Amarração, estendendo-se a Campo Maior. Este projeto era defendido pelo senador Gervásio Passos…e teve por continuador o deputado Pires Rebêlo (1, 3).”

Entre todos os que lutaram pela expansão da linha férrea, destaque para o piracuruquense Gervásio de Brito Passos.

Gervásio de Britto Passos (23/06/1837 – 07/02/1923) era filho de Pedro de Britto Passos e Anna Maria Machado de Cerqueira. Teve uma vitoriosa carreira social e política além da patente de Coronel da Guarda Nacional. Tudo iniciou quando ele completou 18 anos, em 1855, ao alistar-se no Partido Conservador, partido do qual tornou-se chefe anos depois…Nesse mesmo ano de 1855, já recebeu a sua primeira patente, a de Tenente da Guarda Nacional. Foi um líder nato, vereador, presidente da câmara e prefeito de Piracuruca, deputado provincial em seis legislaturas e senador da república de 1908 a 1916…Tomando posse no Senado Federal, Gervásio teve como prioridade trabalhar o grande projeto que era o sonho dos piracuruquenses: a construção da Estrada de Ferro, que ligaria Amarração ao interior do Piauí (5).

Senador Gervásio de Brito Passos (5).

Porém, devido à morte de Gervásio em 7 de fevereiro de 1923 (cerca de 8 meses antes da inauguração da Estação) ele não teve a oportunidade acompanhar a chegado do trem em Piracuruca, que se deu em 19 de novembro de 1923 e assim, festejar a obra da qual foi um dos maiores incentivadores (5).

Ainda sobre Gervásio de Brito Passos, em (3) é dito que: “Foi o homem de seu meio, o típico ‘coronel’ do interior piauiense: rico, aferrado à gleba em que nasceu, mandão, inteligente, apoucado de cultura, naturalmente bom, firme nas suas convicções políticas, leal, franco, experiente.”

Busto em homenagem a Gervásio de Britto Passos, exposto na Praça Irmãos Dantas, em Piracuruca.

Porém, existia um entrave com Viação Férrea Cearense que estava atrasando a expansão. Para resolver essa questão, um outro personagem foi muito importante, trata-se de José Pires Rebelo. Pires Rebelo (12/09/1877 a 03/12/1947), foi engenheiro, professor e político. Foi senador pelo Piauí de 1923 a 1930 e de 1935 a 1937, além de deputado federal de 1918 a 1923. Sobre a atuação dele referente à ferrovia, em (1 e 3) é dito o seguinte:

Quando deputado, Pires Rebelo, em um discurso na Câmara do Deputados em 19/07/1918, mostrou erros, apontou distorções, clamou pela iniciação da obra da ferrovia e pela sua autonomia. Um entrave era a causa do retardamento da obra: a Viação Férrea Cearense, a quem éramos atrelados. Dificuldades burocráticas absurdas impediam seu andamento, transformando-a numa anomalia difícil de ser compreendida e embora discutida e criticada, persistiu por vários anos.

Expectativas:
Com o fim do entrave “Desligaram-se os ramais. Criou-se a Estrada de Ferro Central do Piauí. O ramal começou a ser construído e, tempos depois, foi marcada a viagem inaugural” (3).

Com o serviço da Estrada de Ferro Central do Piauí, ora em construção, ficará a cidade ligada ao único porto marítimo do Estado que é Amarração. Todo o leito da estrada de ferro já se acha preparado até Piracuruca, e a locomotiva já penetrou no município, distante da cidade nove léguas (2).

Locomotiva da Estrada de Ferro Central do Piauhy (4).

A construção da estrada de ferro mexeu com a vaidade e gerou perspectiva de progresso em todo o município. Com sua inauguração e o advento da exportação da cera de carnaúba e de outros produtos, Piracuruca passou por um surto de prosperidade… A estação ferroviária era o símbolo da ferrovia… organizou-se então, a comissão que prepararia os festejos para o grande dia da chegada do trem (3).

Registro do convite distribuído na época para a inauguração da Estação Ferroviária de Piracuruca (3).

Em tempo 02: em uma entrevista no ano de 2001, que fiz com o Sr. Francelino Valente “Mestre Branco” (In mamoriam), ele disse: “…uns operários que vieram trabalhar na Estação do trem, vieram de Manaus, operários muito bons…”.

O trem chegou!:
Chegou o grande dia: “…A chegada do trem na estação de Piracuruca ocorreu às onze horas do dia 19 de novembro de 1923 foi um evento memorável, era uma locomotiva movida a lenha, toda enfeitada de fitas e bandeirolas que fez a sua triunfal parada na gare da estação (1, 3).

A vibração dos presentes transformou-se em emoção e alegria regada a champanhe. Nesse dia ainda teve um almoço e encerrou-se com um baile ocorrido na sede da antiga intendência…o baile foi animado pela Lira Senador Gervásio…A um exportador e a um produtor de cera de carnaúba, coube a honra de segurar um saco do produto e colocá-lo no vagão de carga, simbolizando o momento que começaria a partir dali…melhoramos economicamente, o transporte férreo levava nossas mercadorias a outros centros consumidores. Isso contribuiu para a economia dar um salto positivo…tempo em que a cera da carnaúba chegou a altos preços (1, 3).

Estação Piracuruca, de arquitetura inglesa (3). Nessa fotografia do passado piracuruquense, observa-se o movimento da chegada do trem na estação. No destaque, o cidadão Francisco de Brito Magalhães (Chico Brito). Foto colorizada digitalmente por F Gerson Meneses.

Importância:
A estação simbolizou, portanto, o início de uma nova era, a melhora na economia trouxe consigo mudanças sociais, culturais e uma elevação na autoestima do povo!

Ferroviários sobre uma locomotiva a vapor. Essa fotografia foi obtida por mim em 2002 para a matéria “Estação do Abandono” na Revista Ateneu 1. Pertencia ao acervo da esposa de um ex-ferroviário que morava em Teresina-PI. Foto colorizada digitalmente por F Gerson Meneses.
Automóvel e a Estação em segundo plano. Foto: Acervo da Casa de Cultura de Piracuruca e colorizada digitalmente por F Gerson Meneses.
Passagem do trem pela ponte de ferro sobre o Rio Piracuruca. Foto: Acervo da Casa de Cultura de Piracuruca e colorizada digitalmente por F Gerson Meneses.

Expansão da EFCP:
Piracuruca ficou sendo parada final da ferrovia até 1936, quando foi inaugurado o trecho até Brasileira, 1937 até Piripiri e 1952 até Campo Maior. Assim, a ferrovia seguiu lentamente se entendendo até 1969, quando chegou a Teresina. Aí sim, a Estrada de Ferro Central do Piauí ligava o litoral até a capital do estado do Piauí, sendo intensificado o transporte de passageiros (4).

Declínio da EFCP => RFFSA:
A desativação veio através da RFFSA – Rede Ferroviária Federal S.A. – por determinação do Ministério dos Transportes, o qual alegou não ter mais nenhum interesse na ferrovia; decretando, assim, o abandono total. O Governo do Estado através da CMTP – Companhia Metropolitana de Transportes Públicos, em agosto de 1995, adquiriu o direito de uso e exploração do trecho ferroviário, em regime de cessão, junto a RFFSA; apesar de terem sido feitos estudos sobre a viabilidade econômico-social do trecho, a ferrovia continua parada e sem perspectiva clara de reativação (6).

Com o começo da desativação e aos poucos a ferrovia foi entrando em desuso até o seu total abandono, porém até o último suspiro a ferrovia ainda serviu aos piracuquenses…Foi através dos seus trilhos que chegaram a Piracuruca no começo da década de 1990, os trens cargueiros trazendo a brita para a construção da grande Barragem Piracuruca (5).

Em tempo 03: assim, o destino uniu os dois sonhos do Senador Gervásio: a estrada de ferro e uma barragem que perenizasse o Rio Piracuruca. Sobre a Barragem, os estudos preliminares para a sua construção, os quais Gervásio foi um dos reivindicantes, ocorreu ainda em 1914, mas isso é uma outra história.

Abandono:
Após o encerramento da linha, a maioria dos prédios das Estações foram reutilizados e usados como sedes de órgãos públicos e/ou museus, nesse caso, com exceção da Estação de Frecheiras.

Estações do Trecho entre Parnaíba e Cocal: 1 – Parnaíba, 2 – Bom Princípio, 3 – Frecheiras, 4 – Cocal. Com essas Paradas e Estações, formaram-se cidades como Bom Princípio e Cocal.

Em tempo 04: logo no final dessa matéria, tem o link para mais 4 matérias relacionadas à Esplanada da Estação de Parnaíba, ao patrimônio ferroviário de Bom Princípio, ao patrimônio ferroviário de Frecheiras de São Pedro e à Estação de Floriópolis em Parnaíba.

Já no território piracuruquense, uma outra Estação Ferroviária ficou abandonada, é a Estação do Povoado Deserto. Até que em 2023, após várias reinvindicações, obtive informações de que ela está sendo reformada.

Estação do Deserto, em território piracuruquense. Quando a visitei em 1º de janeiro de 2023.

Em tempo 05: logo no final dessa matéria, tem o link para a matéria “Povoado Deserto: um patrimônio histórico, cultural, econômico e social de Piracuruca”, que mostra várias informações sobre o Povoado Deserto, além de destacar a situação da Estação Ferroviária do Deserto no começo do ano de 2023.

No começo dos anos 2000 a situação do prédio da Estação Ferroviária de Piracuruca era precária, e graças a muitas reinvindicações, o prédio foi restaurado.

Situação da Estação Ferroviária de Piracuruca no início dos anos 2000. Fotos: F Gerson Meneses.

Reforma da Estação:
Para que a Estação Ferroviária de Piracuruca fosse restaurada no início dos anos 2000, houve uma intervenção do IPHAN, isso ocorreu devido o prédio ser valorado. Sobre isso, em (4) é dito que a LEI Nº 11.483, de 31 de MAIO DE 2007, trata da transferência dos bens imóveis da extinta REFSA para a união entre outros assuntos relacionados à antiga Rede Ferroviária. Entre esses bens imóveis, em Piracuruca dois deles constam na lista de bens declarados como de valor histórico, artístico e cultural. São eles: A Estação Ferroviária de Piracuruca e a Esplanada da Estação de Piracuruca.

Em tempo 06: Dos dois bens imóveis citados acima, apenas a Estação Ferroviária ainda continua existindo. A Esplanada da Estação em que existia uma Caixa D’água, um curral, casas de ferroviários, etc, não existem mais.

Estação Ferroviária de Piracuruca, registros de 10 de setembro de 2022. Fotos: F Gerson Meneses.

Em tempo 07: Atualmente o prédio da Estação Ferroviária de Piracuruca está restaurado e é ocupado e cuidado pela APAE de Piracuruca, que aqui desenvolve algumas atividades socioeducativas.

Conclusão:
É importante que a Estação Ferroviária de Piracuruca se mantenha ocupada, como no caso agora que está sendo usada para abrigar as atividades da APAE. Já com relação à ferrovia, é difícil imaginar e aceitar tanto descaso com um bem público, como no caso da Ferrovia Litoral – Teresina. Uma luta histórica do povo do Piauí para a sua implantação, e depois de servir por mais de 70 anos viu-se totalmente abandonada e morre lentamente, observada pela inércia de muitos.

A ferrovia acumula promessas de reativação e cada vez fica mais difícil em virtude da ocupação dos terrenos, locais de passagem dos trilhos, retirada dos trilhos e deterioração das estruturas de apoio, como as Estações. No mínimo a ferrovia hoje estaria servindo ao transporte de passageiros e ao turismo, uma rota turística passando por locais como Campo Maior, O Parque Nacional de Sete Cidades (Parada do Boqueirão), indo até o litoral.


Links citados:

História do Transporte no Piauí

Um breve passeio pela Esplanada da Estação Ferroviária da Parnahyba

Sr. Raimundo Luiz de Carvalho, o guardião do patrimônio ferroviário de Bom Princípio do Piauí

Os últimos vestígios do patrimônio ferroviário de Frecheiras de São Pedro – Cocal – PI

A charmosa estação de trem de Floriópolis em Parnaíba – Piauí

Povoado Deserto: um patrimônio piracuruquense

Referências bibliográficas:
1 – BITENCOURT, Jureni Machado. Apontamentos históricos da Piracuruca. Teresina: COMEPI, 1989.
2 – BRITO, Anísio. O Piauhy no Centenário de sua Independência. Therezina: Papelaria Piauhyense, 1923;
3 – BRITO, Maria do Carmo Fortes de. Remexendo o Baú. Piripiri: Gráfica Ideal, 2003.
4 – MENESES, F Gerson. Povoado Deserto – Um patrimônio piracuruquense 1ª Edição. 2023. E-Book, Link: https://portalpiracuruca.com/download/povoado-deserto-um-patrimonio-piracuruquense.
5 – MENESES, F Gerson. 2023 é o ano de dois centenários marcantes para a Piracuruca. Revista Ateneu nº 4: Gráfica SIEART, 2022.
6 – MENESES, F Gerson. A Estação do Abandono. Revista Ateneu nº 1: Gráfica do Povo, 2003.