O Laborioso e Pitoresco Porto Salgado da Parnaíba – Piauí

O texto a seguir foi extraído do Almanaque da Parnaíba de 1938, escrito em 1937, por Raimundo Sousa Lima, e transcrito por Diderot Mavignier. Até os anos de 1970, o que chamamos hoje de Porto das Barcas era o histórico Porto Salgado, pelo grande desembarque de sal, consumido pelas oficinas de couro e carne salgada. Porto das Barcas, ou Sítio dos Barcos, foi o arraial aonde se formou a Vila de Nossa Senhora de Monserrathe da Parnahiba (1708), depois Vila de São João da Parnahiba (1770).

Porto das Barcas aonde se formou a Vila de São João da Parnahiba. Perspectiva de 1809. Desenho de Joze Pedro Cesar de Menezes. Arquivo Histórico do Exército, Rio de Janeiro, Brasil.
Desembarque no Porto Salgado. Imagem do Almanaque da Parnahyba, 1928, p. 48.

O Porto Salgado, em Parnaíba, é um dos pontos mais movimentados e alegres da cidade.

Ao espectador, mesmo o mais simples e indiferente, não podem escapar certos detalhes da sua vida afanosa e divertida.

Mal a cidade se desfaz do frio e pardacento véu que a envolveu durante a noite, já aqui e ali, se avistam pequenos grupos de homens como se tivessem pernoitado ali, ao relento, no cumprimento de uma outra obrigação que não a dos seus trabalhos diários.

À medida que a claridade solar vai-se alastrando por sobre o casario de fachadas vistosas e bem cuidadas, também os inúmeros trabalhadores que se achavam agrupados: uns agachados , friorentos, olhos semicerrados, cabeça apoiada, indolentemente sobre o ombro; outros, ao contrário, olhos bem vivos, irrequietos, cigarro preso a um canto da boca, de longe em longe soltando grossas baforadas de fumaça, invariavelmente segundadas por um chuvisco de chalaças – vão-se locomovendo rumo aos seus vários misteres. Sobre o dorso do esguio Igarassú que deslisa gravemente, trafega quase ininterruptamente três canoas em sentido transversal, dando assim acesso aos nossos mercados a dezenas de pequenos lavradores com os seus variados produtos.

É deveras interessante a azáfama desses obscuros camponeos de alma nobre, diante da fleugma do passador semiletrado e vedoia, no dizer dos passageiros constantemente vencidos nos seus argumentos desencontrados.

O canoeiro, ciente da sua incontestável utilidade naquele posto, parece não se ralar com uma amizade a menos ou cousa semelhante; olha, gráve friamente sempre que ouve alguma reclamação referente à morosidade na travessia, e, num tom pachorrento e enervante resmunga: “quem num qué sofrê nasce morto; aí está”. Depois, numa voz meliflua, como para surtir efeito no ânimo das mocinhas – que também enchem a embarcação justamente com os seus balaios de frutos, verduras e guloseimas – ensaia um gorgeio todo cheio de complicações vocálicas até atingir a margem rampada. Isso feito, finca a ponta ferrada da vara no solo e da popa da sua canoa, fica dominando com sua vista o turbilhão de seres que se movimentam em diversos sentidos.

As atividades do Porto, já atingiram, então, o seu mais alto grau. Aqui, armazéns completamente abarrotados de sacos de cêra de carnaúba, amêndoas de babassú, tucum etc, produtos do Estado que vão ser embarcados para o estrangeiro e portos nacionais. Ali, em frente, uma pilha de sacos de cereais parece querer impedir o tráfego dos aviões. Acolá, uma longa fila de homens corta em linhas sinuosas uma boa distância para vir depositar fardos de algodão em grandes alvarengas ao cais.

É o trabalho.

Dois titans, junto a um lote de fardos de algodão fazem demonstração despretensiosa das suas respeitáveis musculaturas. Então afeitos a aquele serviço. Suarentos, sujos dizendo graçolas pelo esforço violento ao levantar os fardos de 200 quilos, não se deixam, entretanto, abater pela fadiga do labor nem pela ardência do sol.

Geralmente apupam-nos assim no momento em que lhes colocam na cabeça pesado volume: “desmancha esse cacunda caboclo, tará pensando qui isso é brinquedo de menina fême?” Em seguida, grita forte e demoradamente – “ti endireita, cheio de volta”.

É, assim, ora contando basofias, ora sapateando, cadenciadamente, ao som do pífaro furiosamente soprado por um embarcadiço gordo de pele lustrosa, semi-nú, heroicamente deitado numa rede de tucum menor do que ele, nos caibros de uma barca que se acha fronteiriça ao cais, os trabalhadores vão removendo para os purões das inúmeras embarcações surtas no porto, montões e montões de sacos, todos destinados a longínquas paragens: Hamburgo, Liverpool, Amsterdam, Nova York, etc.

Agora, enquanto Cafagé, João Pade, Baleia, Alicate, Prinapo, Boto e outros se acocoram em torno de taboleiro arrochado de sarapatel, que “Dom Maria”, para quebrar o cuspo, os encarregados dos armazéns, conferentes, com o dinamismo dos que habitam estas plagas de Deus, vão ultimando os seus afazeres na previsão do apito da fábrica do seu Bem-Hur, que manda fechar as casas comerciais para o almoço.

A faina, arrefece ao silvar estridente e prolongado das diversas usinas manufatureiras, situadas nos diferentes bairros da cidade.

E aquela onda humana deixava por um surto espaço o Porto, para, logo após, voltar à lide; vem sem pressas nem cuidados, panças cheia, portanto, tudo justo e perfeito.

O resto do dia decorre com menos intensidade na praia: a maior parte dos trabalhadores interna-se nos armazéns, classificando cêra, ou alguma outra ocupação.

O astro-rei, depois de haver brilhado doze horas, declina e desaparece ao poente, morrendo numa agonia lancinante.

Seus raios já esmaecidos detêm-se, trêmulos, por alguns minutos, apenas sobre as palmas do carnaubal sem fim, da Ilha Grande, num saudoso adeus.

E o velho Porto Salgado, espreguiça-se, boceja, socega e dorme, vigiado por um longo cordão de taciturnas embarcações, em cujos mastros brilha o símbolo da vida e da fé.

Parnaíba, Julho de 1937.